Juventude Conservadora da UnB
Posted: 29 Jan 2014 11:23 AM PST
Não é coisa muito difícil de acontecer nos depararmos com textos de pessoas muito preparadas que sejam alicerçados em conceitos imprecisos. Quando um pedreiro bem capacitado constrói uma casa ruim, não significa que todas as casas que construiu e venha a construir sejam ruins, nem que sua habilidade de erguer edifícios seja deficiente: significa apenas que construiu uma casa ruim. E é preciso reformar – ou demolir – casas ruins, por melhor que seja o pedreiro que as construiu.
O texto "Não se engane: o conservadorismo é antagônico ao liberalismo" é exatamente como uma casa ruim construída por um pedreiro habilidoso – nesse caso, Carlos Góes, libertário, mestre pela Johns Hopkins e articulista do "Mercado Popular". Os conceitos e as idéias sobre as quais seus argumentos se fundam são tortos e frágeis, e isso compromete toda a estrutura do texto. Esta análise não tem por objetivo reformar o prédio oscilante, mas antes demoli-lo de modo que os alicerces possam ser consertados.
O primeiro problema do texto é a uniformização artificial de indivíduos sob um mesmo rótulo: "Enquanto conservas vão falar contra as drogas e o casamento gay, liberais vão ter propostas radicais como a legalização de todas as drogas e a desestatização do casamento." Essa uniformização considera que todos os indivíduos que se identificam de tal maneira irão, necessariamente, defender exatamente as mesmas bandeiras – um pensamento que, ironicamente, desconsidera qualquer possibilidade de posicionamento individual sobre os temas. Um exemplo patente disso é o libertário Ron Paul, que, contrariando o que pensa uma grande parte (ou, ouso dizer, a imensa maioria) dos libertários, é veementemente contra o aborto.
Ainda nessa seara, Góes define que o conservador é um amante e defensor empedernido do status quo; que valoriza a tradição apenas por ser tradição, e o costume por ser costume, sem que haja qualquer tipo de exercício racional de reflexão ou ponderação; que a mudança é um mal, ainda que inevitável e, às vezes, necessário. No entanto, o maior absurdo de todos é ler que o conservador ignora "o valor intrínseco do indivíduo, relegando-o a mera engrenagem na máquina da tradição". Diante de tais afirmações, é muito difícil cogitar a possibilidade de o autor ter lido alguma obra conservadora – ainda que, em seu artigo, tenha citado o texto "Dez Princípios Conservadores", de Russell Kirk (que, aliás, parece ter lido apenas superficialmente) – ou estudado mais detidamente as ricas tradições conservadoras da Europa continental, da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos. O sentido em que o termo "conservador" é utilizado por Góes é meramente adjetivo – conservador é aquele que deseja conservar o que quer que seja – e, ao confundi-lo com o espírito conservador (como explicitou Michael Oakeshott), comete algumas impropriedades bastante graves.
Em "Dez Princípios Conservadores", ao tratar do equilíbrio entre estabilidade e mudança, Russell Kirk afirma:
O conservador raciocina que a mudança é essencial para um corpo social da mesma forma que o é para o corpo humano. Um corpo que deixou de se renovar, começou a morrer. Mas se este corpo deve ser vigoroso, a mudança deve acontecer de uma forma harmoniosa, adequando-se à forma e à natureza do corpo; do contrário a mudança produz um crescimento monstruoso, um câncer que devora o seu hospedeiro. O conservador cuida para que numa sociedade nada nunca seja completamente velho e que nada nunca seja completamente novo. Esta é a forma de conservar uma nação, da mesma forma que é o meio de conservar um organismo vivo. Quanta mudança seja necessária em uma sociedade, e que tipo de mudança, depende das circunstâncias de uma época e de uma nação.
Ao contrário de ver a mudança como um "mal inevitável", o conservador enxerga a mudança como um bem necessário na medida em que acontece de maneira harmoniosa e progressiva. Nisso recai essencialmente a firme crítica de Edmund Burke à Revolução Francesa feita em "Reflexões sobre a Revolução na França".
Outra coisa que escapa completamente ao texto de Góes é o fato de que o conservador sempre leva em consideração a imperfectibilidade do homem. O conservador tem consciência de que a vida humana é, fundamentalmente, uma luta interior para combater os vícios e fomentar as virtudes, e que não pode haver moral pública desvinculada da moral particular. Ao fim e ao cabo, a manutenção da ordem está estreitamente relacionada ao autogoverno que todo o indivíduo deve ter sobre si mesmo – a natureza humana é uma natureza decaída –, não com base em concepções morais subjetivas, mas na ordem moral objetiva e transcendente a que chamamos de Lei Natural. A esse respeito, C. S. Lewis expôs excepcionalmente bem a natureza da Lei Natural:
Cada homem está sujeito, a todo o momento, a diversos conjuntos de leis, mas há apenas um ao qual pode desobedecer livremente. Por ser um corpo material, está sujeito à lei da gravidade e não pode desobedecer-lhe: se o deixarmos solto no meio do ar, sem nada que o sustente, não terá mais escolha do que uma pedra quanto a cair ou não cair. Por ser um organismo, está sujeito a diversas leis biológicas às quais não pode desobedecer. Ou seja, o homem não pode desobedecer às leis que compartilha com as outras coisas; mas à lei que é peculiar à sua natureza humana, à lei que não compartilha nem com os animais, nem com os vegetais, nem com os seres inorgânicos, a essa lei pode desobedecer, se assim o quiser. [...]
É verdade que os homens divergiram ao longo do tempo quanto às pessoas com quem se devia ser altruísta: se apenas com a própria família, ou com todos os compatriotas, ou ainda com qualquer ser humano; mas sempre estiveram de acordo em que se deve pensar primeiro nos outros, e o egoísmo nunca foi considerado digno de louvor. Também houve divergências quanto ao número de mulheres que um homem poderia ter, se uma só ou quatro; mas sempre se esteve de acordo em que não se podia simplesmente ter qualquer mulher que se desejasse. [1]
Curiosamente, Adam Smith parece assumir esse mesmo direcionamento, como se pode ler abaixo:
Em toda sociedade civilizada, em toda sociedade em que se tenha estabelecido plenamente a distinção de classes, sempre houve simultaneamente dois esquemas ou sistemas diferentes de moralidade; um deles pode ser denominado rigoroso ou austero e o outro, liberal ou, se preferirmos, frouxo. O primeiro costuma ser admirado e reverenciado pelas pessoas comuns e o segundo geralmente é mais estimado e adotado pelas chamadas pessoas de destaque. O grau de desaprovação que se deve atribuir às depravações da leviandade — males que facilmente se originam da grande prosperidade e do excesso de satisfação e bom humor — parece constituir a principal diferença entre esses dois esquemas ou sistemas opostos. No sistema liberal ou frouxo, o luxo, a devassidão e até mesmo a alegria desordenada, a busca de prazer até certo grau de intemperança, a violação da castidade, ao menos em um dos dois sexos etc., desde que não venham acompanhados de indecência grosseira e não levem à falsidade ou à injustiça, são geralmente tratados com bastante indulgência, sendo facilmente desculpados, ou até totalmente perdoados. Ao contrário, no sistema austero, esses excessos são vistos com o máximo de repugnância e ódio. As depravações da leviandade são sempre maléficas para as pessoas comuns, bastando muitas vezes um descuido e a dissipação de uma semana para arruinar para sempre um trabalhador pobre e levá-lo, pelo desespero, a cometer os maiores crimes. Por isso, a parcela mais sensata e melhor do povo sempre aborrece e detesta ao máximo tais excessos, e com a experiência que têm tais pessoas, sabem de imediato que eles são fatais a todas as pessoas de sua condição. Ao contrário, o desregramento e a extravagância de vários anos nem sempre levarão à ruína um homem de posição, e as pessoas dessa classe são fortemente propensas a considerar o poder de entregar-se até certo ponto a tais excessos como uma das vantagens de sua fortuna, e a liberdade de fazer isso sem censura ou repreensão como um dos privilégios condizentes com sua posição. Por isso, em se tratando de pessoas de sua posição, é muito pequena a desaprovação que dão a tais excessos, e mínima ou até nula a censura que lhes imputam. [2]
Nem Adam Smith, nem Frédéric Bastiat, para citar dois gigantes do pensamento liberal clássico, admitiam a possibilidade de que a ordem moral fosse sujeita a modificações impostas com base na "utilidade social" – a filosofia moral de Smith era avessa ao utilitarismo. A moral não era, para eles, subjetiva e maleável, mas objetiva, palpável e perfeitamente discernível. Eles, como os conservadores, não enxergavam a liberdade como um fim em si mesma, nem que ela fosse necessariamente antagônica à ordem. A idéia de que é preciso haver um equilíbrio entre ordem e liberdade é presente tanto nos pensadores conservadores quanto nos primeiros liberais clássicos.
Aliás, acerca da liberdade, é verdadeiramente ultrajante a acusação de que os conservadores ignoram o valor intrínseco do indivíduo. É justamente por se pautarem por critérios ontológicos, e não utilitários, que o espírito conservador é capaz de valorizar as coisas por si mesmas, inclusive o homem. O que o conservador não pode fazer é acreditar que a liberdade seja um fim em si mesma, pois, por sua natureza, apresenta um caráter relacional, e não absoluto. Burke pode nos fornecer uma idéia do motivo:
Gabo-me de amar uma liberdade resoluta, moral e regulada, tão bem quanto qualquer cavalheiro dessa sociedade, seja ele quem for; e talvez eu tenha dado provas de minha afeição por essa causa no decorrer de minha carreira pública. Acho que invejo tão pouco quanto eles a liberdade em qualquer outra nação. Mas não me posso apresentar e oferecer louvor ou censura a alguma coisa relacionada a ações humanas, e interesses humanos, pela simples visão do objeto uma vez que se apresenta despido de qualquer relação, em toda a nudez e solidão da abstração metafísica. As circunstâncias (que junto a alguns senhores passam por nada) dão na realidade a todo princípio político seu colorido distintivo e seu efeito característico. São as circunstâncias que tornam todo plano civil e político benéfico ou nocivo à humanidade. Abstratamente falando, governo, bem como liberdade, é bom; e, no entanto, poderia eu, dez anos atrás, em pleno bom senso, ter felicitado a França por desfrutar de um governo (pois ela então tinha um governo) sem querer saber qual era a natureza desse governo, ou como ele era administrado? Posso, então, agora congratular a mesma nação por conta de sua liberdade? É porque liberdade em abstrato pode classificar-se entre as dádivas da humanidade que vou seriamente felicitar um louco, que escapou da restrição protetora e da saudável escuridão de sua cela, por sua volta ao gozo da luz e da liberdade? Devo congratular um assassino e assaltante de estrada, que fugiu da cadeia, pela recuperação de seus direitos naturais? [3]
Dever-se-ia citar uma enormidade de autores aqui – Edmund Burke, John Adams, Bertrand de Jouvenel, T. S. Eliot, Russell Kirk, Irving Babbitt, Richard Pipes, G. K. Chesterton, Alexis de Tocqueville, John Henry Newman, Gertrude Himmelfarb, dentre outros – para, a contento, desfazer todos os equivocados lugares-comuns dos quais o autor se valeu para escrever seu texto. Esse não é, entretanto, o pior dos problemas. O que realmente torna apodrecido o alicerce do edifício verbal que se busca demolir é seu caráter panfletário: os conservadores representariam o retrocesso, o preconceito, a vilania, a barbárie dos primeiros tempos, ao passo que os liberais são os paladinos da evolução constante e utilitária das relações humanas rumo a um progresso inexorável. A bem da verdade, essa idéia é muito mais afeita a um jacobino do que a um liberal. Isso é ainda mais decepcionante em se tratando de um autor que tem considerável bagagem cultural e intelectual, e que, em virtude de seu próprio ofício, deveria prezar pela acuidade de raciocínio e linguagem, bem como honestidade intelectual.
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[1] LEWIS, C. S. Mero cristianismo. São Paulo: Quadrante, 1997, p. 20-21; 22.
[2] SMITH, Adam. A Riqueza das Nações: Investigação Sobre sua Natureza e suas Causas. São Paulo: Nova Cultural, 1996, vol. 2, p. 254-255.
[3] BURKE, Edmund. Reflexões sobre a Revolução na França. Rio de Janeiro: Topbooks, 2012, p. 151-152.
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[PAPA LEÃO XIII , ENCÍCLICA SAPIENTIAE CHRISTIANAE , DE 10 DE JANEIRO DE 1890]