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‘O que as cotas mascaram’, editorial do Estadão
A Câmara dos Deputados aprovou, o Senado acaba de endossar e a presidente Dilma Rousseff vai sancionar jubilosamente o projeto de lei que obriga as universidades e escolas técnicas federais a reservar 50% de suas vagas a candidatos que cursaram o ensino médio na rede pública. Metade dessa metade se destinará a alunos cuja renda familiar per capita não ultrapasse 1,5 salário mínimo. Menos ou mais pobres, sempre terão prioridade os estudantes autodeclarados negros, pardos e indígenas. A amplitude das cotas raciais variará conforme o peso de tais grupos na população dos respectivos Estados, aferido pelo censo. Quando for insuficiente o número de candidatos elegíveis pelo critério racial, as vagas restantes serão disputadas pelos demais egressos do sistema público. A norma valerá por 10 anos, quando então os seus resultados serão avaliados.
A adoção de cotas raciais na universidade é constitucional, conforme decisão unânime do Supremo Tribunal Federal (STF), em abril último. Isso não quer dizer que o sistema devesse ser adotado. Os seus insuperáveis defeitos de origem são múltiplos ─ a começar pela enormidade, em sentido literal e figurado, da reserva de vagas, configurando uma limitação brutal da disputa não discriminada pelo acesso à formação superior. Mesmo entre os defensores da aplicação do chamado modelo de ação afirmativa na educação, para corrigir desigualdades e preconceitos impregnados na sociedade brasileira, há quem considere “descabelado” excluir do preenchimento pelo critério exclusivo do mérito uma em cada duas vagas disponíveis na rede federal de terceiro grau e escolas técnicas. Além disso, a imposição de um índice único a todas as 59 universidades mantidas pela União representa uma gritante ruptura do princípio da autonomia universitária.
Nas palavras do diretor da Fapesp e ex-reitor da Unicamp, Carlos Henrique de Brito Cruz, trata-se de “uma usurpação” do direito de cada universidade de escolher o modelo de ampliação das oportunidades de acesso a seus cursos que julgar mais adequado ao seu perfil e vocação. É assim que já funciona. Pelo menos 30 dessas instituições implantaram sistemas de cotas, de acordo com as suas peculiaridades. A Universidade de Brasília (UnB), por exemplo, reserva 20% do total de suas vagas a vestibulandos autodeclarados negros e pardos e 11 vagas em 7 cursos para indígenas. A Universidade Federal do Rio de Janeiro, por sua vez, reserva 30% dos lugares para alunos da rede pública oriundos de famílias com renda mensal per capita de até um salário mínimo. E não adota cotas raciais. Agora, o projeto em vias de virar lei acaba com esse laboratório de experiências de manifesta utilidade.
O mais grave, de toda forma, é que esse tipo de favorecimento impositivo a alunos da escola pública antes escamoteia do que contribui para resolver o notório problema da baixa qualidade do ensino fundamental e médio gratuito. O benefício perpetua na prática um padrão de aprendizagem insuficiente para dar aos jovens condições razoáveis de ingresso na universidade pública, mesmo em cursos menos concorridos. Já não bastasse isso, a restrição de vagas tem o efeito perverso de fomentar a discriminação às avessas, ao empurrar para faculdades particulares, não raro aquém do nível de suas congêneres públicas, alunos cujas famílias podem arcar com as suas mensalidades.
Os efeitos sobre o ensino superior das políticas de cotas já em andamento ainda estão por ser determinados. Para os cotistas, indica uma avaliação da Unicamp, o benefício tende a variar na razão inversa do grau de dificuldade do curso escolhido. E pode-se presumir que o projeto será tanto mais danoso para uma universidade quanto mais rigorosos forem os seus padrões de ensino e, principalmente, de pesquisa.
A alternativa não é cruzar os braços. A USP, por exemplo, concebeu um bem-sucedido esquema de incentivos. O Inclusp, como é chamado, não apenas concede bônus de até 8% nas notas do vestibular a ex-alunos da rede oficial, como ainda envia “embaixadores” aos colégios para divulgar o programa e incentivar os jovens a fazer o exame. Neste ano, 28% dos candidatos aprovados vieram da escola pública.
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