Relatório sobre
Clonagem e Experimentação com Embriões Excedentários
João Araújo
Introdução
Este relatório divide-se em quatro partes:
1. Apresentação dos dados do problema
2. Apresentação do problema
3. Propostas de solução
4. Conclusão
Dados do Problema
Consideremos o conjunto de todos os seres humanos (SH) e
consideremos dois elementos desse conjunto: o ser humano A (que pode ser
o leitor ou eu) e um outro ser humano B. O ser humano A tem uma
série de direitos, nomeadamente:
a) Direito à vida
b) Direito a não ser obrigado a doar partes vitais do seu
corpo ou a ser usado em experiências para benefício de terceiros
Embora eu e o leitor sejamos diferentes, em algo somos
essencialmente iguais e por isso ambos gozamos dos direitos a) e b). Cabe agora
saber se será possível haver seres humanos, A e B, de tal forma
diferentes, essencialmente diferentes, de modo a que A (o leitor
ou eu) goza dos direitos a) e b), enquanto B não goza? Uma
vez que não se podem negar os mesmos direitos a seres humanos essencialmente
iguais, a resposta afirmativa à pergunta anterior pressupõe a prova de que
existem diferenças essenciais entre o leitor e aquele ser humano a quem se
pretenda negar o direito à vida ou o direito à integridade do seu corpo.
Problema
Foram colocados três problemas à Comissão:
1. É lícito usar em experiências científicas os embriões
humanos que sobraram num processo de Procriação Medicamente Assistida?
2. É lícito usar a fertilização
in vitro para criar embriões humanos que serão usados em experiências
científicas destrutivas?
3. É lícito usar o processo de clonagem para criar (quase)
embriões que serão usados em investigação científica?
Podemos repetir estas perguntas com uma ligeira alteração:
4. É lícito usar o leitor em experiências científicas?
Dadas as considerações da secção anterior (Dados do Problema)
para que a pergunta 4. seja ridícula e as perguntas 1., 2 e 3. sejam
sérias, é necessário demonstrar que o ser considerado na pergunta 4. (o
leitor) é essencialmente diferente dos seres considerados nas perguntas
1., 2. e 3..
Representamos o conjunto de todos os seres humanos (SH)
por um rectângulo. O nosso objectivo é identificar uma linha r que
estabeleça uma diferença essencial (da qual decorram direitos) entre duas
classes de seres humanos:
Evidentemente, se não existe a linha r
estabelecendo uma diferença essencial entre seres humanos, não é possível
conceder o direito a) ou b) ao ser humano A e negar o mesmo direito ao
ser humano ¾essencialmente
igual¾
B. Portanto, torna-se necessário encontrar um conjunto de características
que estejam presentes em A, mas não em B, e das quais decorra o
gozo dos direitos a) e b). Este é o cerne do problema que foi colocado à
Comissão e que tem sido colocado um pouco por todo o mundo. É preciso
demonstrar que há seres humanos de primeira e seres humanos de segunda.
Observe-se de passagem que este problema não é novo na história
da humanidade. A questão dos direitos dos índios americanos (seja Brasil, México
ou EUA), que durante séculos ocupou políticos, juristas, filósofos, moralistas e
muitas pessoas mais, é essencialmente do mesmo tipo: “Existe alguma
característica que distinga os índios dos europeus e que explique a diferença de
direitos?”. O mesmo se diga da escravatura: “Qual é a diferença essencial
entre um europeu e um africano para que o primeiro, ao contrário do segundo, não
possa ser feito escravo?”. E o mesmo se pode dizer das relações entre judeus
e alemães nos anos 30 do século XX. Em todos estes casos o problema consiste em
justificar uma discriminação legal e/ou prática, mas sempre real.
Propostas de Solução do Problema
Foi pedido aos membros da Comissão para exporem a sua posição,
mas sem argumentarem. Eu posso já adiantar que a minha posição sobre este
problema é muito simples: embora existem várias pessoas que pensam
ter encontrado a linha r, eu não julgo que o tenham feito efectivamente
dado que todas as linhas propostas me parecem inválidas a vários títulos. Pela
peculiaridade desta posição (eu não nego que a linha exista, nego é que
alguém a tenha encontrado) torna-se necessário provar que isso não resulta
de um eventual desconhecimento das propostas nem de uma incapacidade para ver a
linha que para alguns poderá parecer óbvia.
As sugestões avançadas por diversos
membros da Comissão cobrem grande parte da variedade de propostas que existem no
mundo. Eu vou tratá-las de forma rápida, embora sem identificar as pessoas que
as defenderam porque, evidentemente, uma posição vale pelos méritos próprios e
não por quem a sustentou. Essas propostas de solução aparecem em itálico, mas
não se pretende com isso sugerir que são uma citação textual de palavras
alheias.
Viabilidade I
A linha r
deve ser colocada na viabilidade. Um embrião produzido por
fecundação in vitro enquanto estiver fora do útero
não é viável; o mesmo se diga do embrião produzido por clonagem. Esta linha
não serve porque:
a.Quando se diz que um
ser vivo não é viável está-se a dizer que o ser não sobrevive e/ou não se
desenvolve fora do seu ambiente próprio. Mas isso é uma característica de
todos os seres vivos: nenhum sobrevive fora do seu ambiente próprio. Eu não sou
viável no fundo do mar, as batatas não são viáveis na Lua nem as sardinhas na
pradaria. O útero é o ambiente próprio para a criança de 12 semanas, mas não é
próprio para a criança de 3 anos. É tão lícito fazer experiências com o embrião,
alegando que ele no ambiente do leitor morre, como seria lícito fazer
experiências com o leitor alegando que ele no ambiente do embrião (mergulhado em
água açucarada) morre.
b.Para mais dentro de um
país um ser tem ou deixa de ter direitos por aquilo que é e não pelo sítio onde
está. Se um ser foi artificialmente criado ou retirado do seu ambiente natural
¾o
ambiente onde pode viver e desenvolver-se¾
e agora não se quer ou não se pode (re)colocá-lo no seu ambiente, isso é
irrelevante para a questão dado que os direitos em causa resultam daquilo que
se é e não do sítio onde se está.
c.
Assim, o argumento da viabilidade,
interpretado para as questões que ocupam a Comissão, significa que se “pode
fazer experiências com qualquer ser que tenha sido criado ou colocado fora do
seu ambiente próprio”. Um princípio que, como se viu, deixa o leitor numa
situação muito difícil.
Viabilidade II
O conceito anterior de viabilidade, por respeitar ao ambiente,
pode-se chamar viabilidade exógena.
A este conceito opõe-se outro que se pode designar por
viabilidade endógena. Deste
conceito deriva a teoria seguinte. Há embriões que por
terem algum problema intrínseco (uma doença incurável, alguma deficiência
genética ou outra) necessariamente vão morrer a curto prazo, e por isso não são
viáveis. Com estes, uma vez que nunca chegarão a ser
pessoas, poderemos fazer experiências destrutivas. A viabilidade
endógena não serve como linha r pelas razões seguintes.
a.
Eu sou um ser vivo e pertenço à única
espécie que contém seres humanos. Por isso se diz que eu sou um ser humano.
Os embriões são seres vivos e pertencem à única espécie que contém seres humanos
e por isso se diz que são seres humanos. Ao dizer que estes embriões, estes
seres humanos, nunca chegarão a ser pessoas, está-se a supor que existem
seres-humanos-não-pessoa. Acontece porém que a existência desta classe é
uma boa conjectura, mas efectivamente nunca foi provada. E esta falha na prova
não resulta, longe disso, de falta de investigação na matéria. Dentro dos
modelos teóricos para justificar o aborto, seguramente os mais discutidos,
apreciados, dissecados, louvados e condenados são estes modelos cujo ponto base
é a presunção de existência de seres-humanos-não-pessoa. Embora
existam especialistas defendendo a existência desta classe, a verdade é que nem
eles próprios estão de acordo sobre quando e como é que um ser humano se torna
pessoa. Portanto, este argumento supõe a existência de uma classe cuja
existência nunca ninguém provou e, pior ainda, cujos limites são completamente
desconhecidos (alguns autores têm as suas teorias próprias, mas, em geral, há
tantos limites quantos os autores). Assim, pode dar-se o caso de os embriões se
tornarem pessoas aos dois dias, ou dois minutos, ou nunca se tornarem pessoas,
ou nunca terem deixado de o ser. O facto é que ninguém sabe ao certo, e portanto
não se pode usar na prática algo que só está conjecturado, sob pena de se
incorrer nessa falácia medonha que consiste em confundir factos com conjecturas.[1]
Na dúvida, precaução.
b.
Para mais, todas estas teorias dos
seres-humanos-não-pessoa partem de uma visão funcionalista: um
ser vale pelo que faz (tem consciência de si, capacidade de comunicação,
pensamento abstracto, etc.) e não pelo que é (e.g., filho de seres humanos). Mas
a verdade é que do ser ao fazer vai uma enorme distância.
c.
Um problema mais destas teorias dos
seres-humanos-não-pessoa é que em geral acabam por fornecer os
fundamentos teóricos para a defesa do infanticídio. Michael Tooley, Mary-Ann
Warren, Joseph Fletcher, Peter Singer, são alguns dos principais defensores
destas teorias, e são também alguns dos mais destacados partidários da
aceitabilidade do aborto e do infanticídio. E não se ficam por aqui: esta
identificação entre ser e fazer, abre as portas ao senilicídio e a
outras actividades do mesmo tipo já hoje larga e abertamente defendidas porque,
afinal, quem já não faz, já não é.
d.
Assim sendo, defender a experimentação
com embriões invocando a existência (postulada mas nunca provada) de uma classe
de seres humanos infra-pessoas (ou pessoas em potência), partindo de um
base filosófica (o funcionalismo) de méritos mais que duvidosos, e quando é a
própria teoria a justificar à partida experiências com bebés já nascidos e com
idosos, parece ser um caminho demasiado perigoso, descontrolado e completamente
fora do razoável. Ou, vendo as coisas por outro lado, não se poderia arranjar
melhor prova de que não existe a linha r do que aparecerem os seus
defensores a dizer abertamente que não só é lícito fazer experiências com
embriões como é lícito usar fetos, bebés já nascidos, idosos e “todos os seres
humanos que não funcionem como pessoas”.
e.
Outra razão importante para temer os
efeitos desta teoria é o facto dela aparecer em disputas do passado ligada ao
lado errado da contenda. A conjectura que postula a existência dos seres-humanos-não-pessoa
aparece claramente enunciada no caso Dred Scott, a sentença do Supremo
Tribunal Americano que decidiu (da forma mais infeliz) a questão da escravatura
nos EUA. No ponto crucial do argumento, grosso modo, defende-se que: a) a
Constituição americana só se aplica a pessoas; b) os escravos são seres-humanos-não-pessoa,
pelo que a Constituição não se lhes aplica. E nas discussões coevas em torno
do assunto o que se nota é que, uma vez mais, a existência desta classe de
infra-pessoas resulta de uma visão funcionalista dos seres humanos. Por exemplo,
Stephen Douglas, o adversário de Lincoln nas eleições de 1857, dizia que é
ridícula a ideia de equiparar um negro ao próprio Lincoln, dada a falta de
produção intelectual (científica ou artística) dos africanos.
f.
Algo de semelhante se diga da hierarquia
das raças adoptada pelos nazis.
g.
Em suma, e para encerrar a discussão em
tornos dos seres-humanos-não-pessoa, não só a tese tem de ser
provada pelos seus proponentes, como o seu paradigma filosófico é muito frouxo e
pobre, como, pior ainda, existem exemplos práticos de aplicação da ideia no
passado tendo o resultado sido trágico.
h.
Mas ainda que fosse verdade, o
argumento não prova porque se nega aos seres-humanos-não-pessoa
direito a protecção dado haver já hoje seres-não-humanos com direito a
protecção.
i.
Finalmente, a ideia de que um embrião
deficiente ou com uma doença de morte pode ser usado em experiências, não tem
qualquer valor objectivo. A vida é uma doença de morte.
j.
Para mais a dignidade de um ser humano
não é diminuída pelo facto de se poder prever que ele vai morrer ou o dia em que
isso vai acontecer. Todos vamos morrer e todos podemos afinal morrer antes desta
criança anencefálica cuja morte prevemos para breve.
k.
Para mais, a deficiência é um contínuo.
Tal como os nazis descobriram da forma mais negra, depois de autorizarem a morte
do bebé Knauer (que não tinha membros e era cego), poucos anos bastaram para
matarem também crianças com orelhas assimétricas ou pé-chato. Eu sou deficiente
e suponho que todas as pessoas da Comissão têm alguma deficiência (notei que
bastantes usavam óculos!). Por isso, colocar a linha r nos embriões com
alguma deficiência é estabelecer uma linha altamente móvel que não se sabe onde
parará.
Gradualismo
O gradualismo consiste em sugerir que não é possível estabelecer
a linha r uma vez que os direitos crescem com o ser humano. O
reconhecimento de direitos não é uma situação de branco ou preto, ter direitos
ou não, é uma questão de se ter um gozo cada vez mais pleno de um determinado
direito. Em geral, para o Direito, o homicídio não é igual ao aborto (as penas
são diferentes). Por exemplo, no primeiro acordão sobre o aborto[2]
recolhe-se esta visão gradual do gozo de direitos, e a justificação
habitualmente dada pelos juristas são “as convicções sociais dominantes”: em
geral a sociedade não atribui a mesma gravidade ao homicídio e ao aborto, nem
atribui a mesma gravidade ao aborto tardio ou ao aborto precoce. O Direito
recolhe a percepção da sociedade. Assim sendo, fazer experiências com um embrião
é muito diferente de fazer experiências com um feto ou um bebé. Pois muito
bem, exposta a posição cabe dizer que o gradualismo não serve como argumento
pelas seguintes razões.
a.
Os gradualistas tentam iludir a questão
de marcar a linha r dizendo que, grosso modo, seres x% humanos só têm um
gozo de direito à vida a x%. Mas ao esquecer-se de mostrar quando e porquê se
atinge qualquer uma dessas linhas (quando atinge os 13% de humanização ou os 13%
de gozo de direito à vida), o gradualismo fica a pairar na teoria como uma mera
possibilidade a explorar, mas que nunca é explorada de facto.
b.
Fica também por esclarecer em que ponto
se torna o ser 100% humano e consequentemente passa a ter um gozo de direito à
vida a 100%.
c.
É verdade que o corpo do ser humano está
em permanente mutação. Mas está o próprio ser em mutação? Há um processo
de orangotanização dos orangotangos? Se me tivessem morto quando eu era criança
ou feto, matavam 80% do João ou o próprio João? O leitor é sempre diferente, já
lhe chamaram embrião, feto, bebé, criança, adolescente, adulto, mas foi sempre a
mesma pessoa. O leitor desenvolveu-se, mas a unidade de todos esses diferentes
estados de desenvolvimento é o próprio leitor, não uma certa percentagem de
leitor. O gradualismo confunde um desenvolvimento gradual do corpo (algo
que existe de facto) com um desenvolvimento gradual do ser (algo
conjecturado mas nunca provado).
d.
Mas ainda que existissem seres 23.8%
humanos, ficava por esclarecer porque não podem eles ter a sua vida protegida,
dado haver seres 0% humanos (pandas, baleias azuis, obras de arte, etc.) cuja
integridade está protegida por lei.
e.
A justificação, alegadamente, fornecida
por alguns juristas (as ditas “concepções sociais”) é um argumento muito frouxo
porque:
a.
de facto não existe nenhuma declaração
oficial, formal e consistente ao longo dos séculos, de grupos maioritários na
sociedade, dizendo que matar um feto é menos grave que matar um recém-nascido
(não estou a falar de leis: estou a falar de fundamentos);
b.
existe o pronunciamento oficial, formal
e consistente de um grupo bastante grande (a Igreja Católica) em sentido
exactamente oposto (a Igreja aplica ao aborto, e não ao homicídio, a excomunhão
automática que é a pena mais pesada que tem);
c.
a minha percepção pessoal e subjectiva
diz-me que a maioria das pessoas entende que matar a tiro uma criança é mais
grave que matar a tiro um adulto e matar a tiro um bebé recém-nascido é ainda
mais grave que matar uma criança.
d.
Em muitas (todas as?) cadeias existe
entre os presos o pacto de se fazer a vida negra a assassinos de bebés e
crianças e, em alguns sítios, o pacto exige a morte do infanticida. Logo, até
presos ¾diga-se,
merecedores de todo o respeito dado que isso lhes é devido pelo que são e não
pelo que fizeram: como já vimos, só os funcionalistas identificam ser com
fazer¾,
muitos deles homicidas, consideram a morte de um bebé algo especialmente
condenável.
e.
Portanto, temos “concepções sociais
dominantes” tanto mais críticas e severas quanto menor a idade e a
vulnerabilidade da vítima, e que, de repente, se tornam muito compreensivas para
com a morte cruel de um bebé ainda mais novo e mais indefeso do que um
recém-nascido!?! Isto faz sentido? Sim faz, faz todo o sentido quando se têm em
conta as experiências de Stanley Milgram.[3]
Como é sabido este professor de Yale provou que a maioria das pessoas (mais de
70%) são capazes de fazer as coisas mais horríveis a outras pessoas inocentes
desde que se cumpram três condições:
i.
achem que há uma razão para isso;
ii.
não estão a ver a vítima;
iii.
não estão a ouvir a vítima.
Nestes termos a pergunta é esta: quantas “concepções sociais
dominantes” fariam um pronunciamento público e formal sobre a pequena
gravidade do crime do aborto, quando comparado com o homicídio, assistindo ao
aborto com os mais modernos aparelhos de ecografia (a cores) e ouvindo o coração
do bebé a bater? A percepção que alguns dizem ter das convicções sociais
dominantes não constitui justificação para nada. Resulta simplesmente da
percepção de uma característica sinistra dos seres humanos: a saber, mais de 70%
dos portugueses, se lhes for dito que estão a colaborar numa experiência
científica importante, seriam capazes de dar ao leitor choques eléctricos
fortíssimos (eventualmente letais), desde que não vejam nem ouçam os gritos e
estertores do leitor. Será que se pode fazer um juízo ético válido tendo por
último fundamento esta característica dos seres humanos?
f.
Uma experiência prática de tudo isto foi
o massacre dos judeus levado a cabo pelos nazis. No princípio havia grupos
especiais que matavam os judeus no local de captura, a frio e a tiro, mas
rapidamente começaram a chover cartas de protesto em Berlim: “os homens não
aguentam”. Depois apurou-se a máquina dos campos de concentração onde a vítima
não era vista nem ouvida. As cartas de protesto cessaram. É lícito concluir que
para estas pessoas é mais grave matar uma pessoa a tiro do que matar milhares
com gás?
g.
Alguns podem tentar justificar o
gradualismo com as “concepções sociais dominantes”, mas a origem real do
gradualismo está numa exportação trapalhona dos conceitos metafísicos de
analogia e participação para cada ser individual.
Clonagem Reprodutiva, Não! Clonagem Terapêutica, Sim!
Existem neste momento duas forças igualmente extremas e
radicais: uns, como o Presidente Bush, rejeitam qualquer tipo de clonagem
(embora autorize as duas em organismos privados e tenha vetado na ONU a
proibição de clonagem reprodutiva), enquanto outros, como os Raelianos, aceitam
todo o tipo de clonagem. Entre estes dois extremos radicais, existe uma posição
de equilíbrio que rejeita completamente a clonagem reprodutiva, mas não fecha as
portas à clonagem terapêutica e às enormes perspectivas de cura para diversas
doenças que ela nos abre. Assim a clonagem reprodutiva deve ser totalmente
rejeitada (por pretender recuperar uma pessoa que nunca poderá ser recuperada: o
clone de uma pessoa não é a mesma pessoa, é uma pessoa diferente), mas a
clonagem terapêutica deve ser permitida. Esta
argumentação está logicamente viciada:
- Trata-se, na verdade, de um exemplo típico da Falácia da Moderação que consiste em sugerir que necessariamente está certo quem se coloca entre dois extremos radicais e dogmáticos. Por exemplo, entre os radicais que defendem que 2+2=4 sempre, sem excepções, e os radicais de sinal oposto cuja posição diz que 2+2 pode tomar qualquer valor que se queira, estou eu na posição equilibrada, moderada e portanto certa dizendo que 2+2 pode tomar o valor 4 ou 5. O problema é que normalmente a posição intermédia é de facto equivalente a uma das posições radicais (pode é a pessoa “moderada” não o ver ou não o querer ver). Por exemplo, se 2+2 é igual a 4 e a 5, então 4=5 e bem assim 4-4=5-4, ou seja, 0=1. Logo, multiplicando ambos os lados da igualdade pelo mesmo número N, temos que N´0=N´1 donde resulta que 0=N. Está provado que todos os números são iguais a zero e assim 2+2=4=0=N. Portanto a posição “2+2 pode ser 4 ou 5” (a posição moderada, equilibrada e portanto certa) implica tão somente a posição “radical e dogmática” de que “2+2 pode tomar qualquer valor”. Este exemplo pode parecer artificial, mas não é: na clonagem passa-se exactamente o mesmo: a posição “moderada, equilibrada e portanto certa” nada mais é que a posição Raeliana embrulhada em paninhos de lã. Porque:
- É falaciosa a distinção entre clonagem terapêutica e clonagem reprodutiva. Nos dois casos temos exactamente a mesma técnica aplicada da mesma forma. No estado actual a única diferença entre as duas são as intenções com que uma mesma técnica é praticada. Ora à partida, “ter um filho” não é uma intenção menos nobre que “curar pessoas”. O mal da clonagem não está seguramente nas intenções anunciadas hoje.
- A chamada clonagem terapêutica, de facto, tem todos os mil inconvenientes da clonagem reprodutiva e mais um defeito medonho: é que o ser resultante da clonagem com fins terapêuticos é usado como um meio, enquanto o clone produzido com fins reprodutivos é usado como um fim em si. Tal como disse o Sr. Ministro da Ciência no seu discurso à Comissão, nenhum ser humano pode ser usado como um meio: todos têm de ser vistos como um fim em si.
- É óbvio que a chamada clonagem terapêutica reduz alguns seres humanos à condição de fármacos. Mas se isto é lícito, moderado, equilibrado e portanto certo, talvez os defensores da clonagem terapêutica se queiram oferecer a si próprios como fármacos doando os seus rins, fígado, pulmões, coração, olhos, etc., para benefício de terceiros ou para a investigação científica. «Não ¾dirão eles¾ não faço isso, porque há um mar de diferença entre um adulto como eu e um zigoto obtido por clonagem». Certo. Já o disse: agora prove-o. Esse é precisamente o problema que está posto acima e para o qual ninguém parece ter solução...
- A clonagem dita terapêutica significa que para prolongar a vida de uma pessoa é lícito saquear partes vitais de um, dezenas ou eventualmente centenas de seres humanos, matando-os a todos. A partir do momento em que for permitido matar um ser humano para lhe retirar partes que prolongarão a vida de outro, não haverá mais limite ao número de seres humanos que poderão ser sacrificados só para prolongar ou melhorar a vida de um único ser humano. Não há a mínima dúvida de que a chamada clonagem terapêutica oferece a mais aterradora visão do que de mais negro nos poderá reservar o futuro próximo.
- Para mais, nesta altura, muitas das razões para condenar a dita clonagem reprodutiva e aceitar a terapêutica, baseiam-se num juízo de valor sobre as razões que poderão levar alguém a querer um processo de clonagem reprodutiva. Mas tudo isto é subjectivo, pessoal e arbitrário, pelo que rapidamente teremos imensas pessoas a dizer: “se para si não se justifica, então não a faça; agora não imponha as suas concepções pessoais e subjectivas aos outros”. E o facto de hoje umas pessoas não verem razões válidas para fazer a clonagem reprodutiva, não vai impedir que daqui a um ano as mesmas pessoas estejam cheias de razões a seu favor.
- Seria péssimo, e uma oportunidade perdida, que a solução final desta Comissão resultasse da aplicação da Falácia da Moderação ao conjunto das propostas apresentadas.
Quase humanos
Um clone não é um ser humano, é um ser quase humano. Tal como
em Direito existem quase contratos, no caso dos clones temos um ser quase
humano. Esta posição não tem fundamento pelas
seguintes razões.
a.
Ilude a questão. A questão é: onde se
coloca a linha r? A resposta fornecida é: aos seres que
estão antes da linha r chamamos quase humanos.
Certo. Mas onde se coloca a linha?
b.
Não interessa saber o que se lhes chama:
interessa saber o que são. Porque são quase humanos e não
inteiramente humanos? Também me podem chamar rico e famoso sem que
isso altere a minha conta bancária ou a minha fama.
c.
E que distância separa esse quase
humano do completo humano? Será que é a mesma distância que vai do “tem
direito à vida” ao “não tem direito à vida”?
d.
E não há seres completamente não
humanos com a vida protegida? Porque não acontece o mesmo com os seres
quase humanos?
e.
A clonagem é uma forma de fazer gémeos
verdadeiros, mas desfazados no tempo (como disse o próprio Wilmut, o “pai” da
Dolly). Portanto, é, no mínimo, muito estranho que enquanto um de dois gémeos
verdadeiros é humano, o outro gémeo verdadeiro é só quase humano.
f.
Veja-se esta experiência
frankensteiniana. Temos um zigoto (do sexo feminino) que se divide em dois, e
estas células são separadas (natural ou artificialmente). Agora temos dois
gémeos verdadeiros (homozigóticos). Um deles congela-se e o outro segue o seu
desenvolvimento normal. Trinta anos depois esta mulher (que tem uma irmã gémea
congelada) sujeita-se a um processo de clonagem: substitui-se o núcleo de um dos
seus óvulos (que tem 23 cromossomas) pelo núcleo de uma célula da sua pele (que
já tem 46 cromossomas). Agora pegamos na irmã gémea congelada, metemo-la numa
caixa opaca junto com o clone e baralhamos. As duas são essencialmente iguais
porque as duas são irmãs gémeas da mulher de trinta anos. Porque será uma humana
e a outra quase humana quando já ninguém consegue saber quem é quem dentro da
caixa? Quando já ninguém consegue estabelecer uma diferença essencial (da qual
resultem direitos) entre as duas?
Artefacto Laboratorial
Um clone é um artefacto laboratorial, é um tecido
laboratorial, portanto pode ser usado em experiências.
Esta posição não tem fundamento pelas seguintes razões.
- Um tecido num laboratório pode ser considerado um artefacto laboratorial tal como uma pessoa num laboratório (eg, o leitor quando vai fazer análises) pode ser considerado um monte de tecidos laboratorial. Esta observação é tão certa quanto inútil. Para se tornar útil seria necessário provar que o leitor não é nada mais que um monte de tecidos em laboratório. Analogamente é preciso provar que um clone, embora seja material e esteja num laboratório, não é nada mais que material de laboratório. Ora isto é uma proposição universal negativa que, como qualquer lógico sabe, só pode ser proferida por seres omniscientes. Se os defensores desta tese sabem tudo que é possível saber sobre a natureza do clone e afirmam que ele é nada mais do que material de laboratório, então a sua tese tem de ser aceite. Pedia só (não é que ponha em causa) que algum dos defensores da tese me provasse a sua omnisciência...
- Uma vez mais temos a confusão entre ser e nome que se verificou no argumento anterior. Ockam pode ser muito popular e dar muito jeito, mas nem por isso fica mais verdadeiro.
Ausência de Projecto Parental
É crítico, no que respeita a direitos reconhecidos, o facto
do clone ou um embrião excedentário estarem excluídos de qualquer projecto
parental. Esta posição não tem fundamento pelas
seguintes razões.
- Qualquer órfão de pai e mãe está excluído de um projecto parental.
- Um ser vale pelo que é e não pelo que significa (em termos de intenções, afectos, pensamentos e projectos) na cabeça de uma ou mais pessoas. Os meus pais (ou outra pessoa) não conseguem alterar a minha natureza modificando a forma como me olham, pensam ou sentem.
- Qualquer pessoa pode ser retirada de um “projecto parental”, e muitas crianças são-no de facto. Podem essas crianças, excluídas de um projecto parental, ser usadas em experiências? Consegue alguém identificar a linha que separa o clone (excluído do projecto parental) do bebé nascido (e excluído do projecto parental)?
- Coloca-se ainda a questão de saber se, pelo facto de muitas crianças serem excluídas do projecto parental (i.e., abandonadas), é lícito permitir isso. Por exemplo, ainda que um pai adoptivo diga ao seu filho (adoptivo) “estás excluído do meu projecto parental” e ainda que o filho esteja de acordo “já não te quero mais para meu pai”, não é possível anular o processo de adopção. Portanto uma questão mais se coloca: que direito têm os pais de excluir aquele embrião do seu projecto parental?
Separação de Poderes
Como Portugal é um Estado em que há separação de poderes
(temporal e religioso), não se pode legislar de acordo com o que a Igreja
defende. Se a Igreja defende a proibição da clonagem, a lei deve permitir a
clonagem. Esta posição não tem fundamento pelas
seguintes razões.
- A Igreja defende a separação de poderes (aparentemente até foi quem primeiro a começou a defender “...a César o que é de César”), e por isso, em nome da separação de poderes, seria preciso proibir a separação de poderes. Um problema complicado...
- A Igreja também defende que 2+2=4, pelo que o Estado, em nome da separação de poderes, não o pode ensinar.
- O Estado não está obrigado a fazer o que a Igreja manda. Mas ninguém está dispensado de provar as suas proposições positivas só pelo facto de dizer o oposto da Igreja. Quem defende que há uma linha de separação real entre embriões e adultos tem de fornecer uma prova positiva e real do que afirma. Não se pode limitar a observar que sendo a sua afirmação o oposto do que a Igreja diz, então necessariamente a afirmação é verdadeira, dado que o Estado é aconfessional e há separação de poderes.
Lei do aborto
Não faz sentido que num país onde o aborto é legal seja
proibido fazer experiências com embriões. Esta
perplexidade não tem fundamento pelas seguintes razões.
- “Não faz sentido que num país onde é lícito matar seres humanos (em legítima defesa) seja proibido fazer experiências científicas com o leitor”. Porque será que, ao contrário do que se sugere, esta situação nada tem de estranho? Porque, como é óbvio, existem razões para excluir a ilicitude num caso de legítima defesa. Logo, para aplicar o regime da legítima defesa à experimentação com embriões, é preciso que o autor da tese prove que as mesmas razões se aplicam nos dois casos. Exactamente o mesmo se passa com a lei do aborto. O autor tem de provar que as razões que levaram à despenalização do aborto em certos casos são igualmente válidas no caso da experimentação. Agora, tal como está enunciada, esta tese não passa de uma mera declaração sem prova.
- É falso que o aborto em Portugal seja legal. A regra fundamental exarada no Código Penal é que o aborto é crime, mas em certas situações bem definidas não há pena aplicada a quem o cometer. Aplicando esta ideia à experimentação, os cientistas que fizessem experiências com embriões seriam criminosos: poderiam não ser punidos, mas não deixariam de cometer um crime.
- Mesmo aceitando esta tese haveria ainda muita margem para legislar. Por exemplo, o aborto na Alemanha é um crime (sem pena, em certas circunstâncias), mas o Supremo Tribunal alemão declarou que o Estado não pode pagar ou colaborar na execução de crimes; portanto, embora o aborto esteja despenalizado (em certas circunstâncias), na Alemanha é proibido fazer abortos em hospitais públicos. Do mesmo modo, nos EUA, abortar é um direito fundamental, mas a Emenda Hyde proíbe o Governo Federal de pagar abortos. Assim, ainda que se aceitasse o argumento da despenalização da experimentação com embriões, ficaria por provar a necessidade do Estado a financiar e permitir que os seus laboratórios sejam usados para cometer crimes.
- Matar um ser humano não é jurídica nem eticamente igual a matar um ser humano com requintes de crueldade. O mesmo se diga de matar um ser humano fazendo todo o tipo de experiências com ele. Não se pode inferir que nos países onde existe a pena de morte, e.g. por injecção letal, existe também a pena de morte por experimentação destrutiva. Ignorando este facto, o “argumento” acaba por sugerir que “tudo aquilo que se pode matar sem sanção pode ser sujeito a experiências científicas destrutivas”, justificando assim, automaticamente, experiências destrutivas com fetos de 16, 24 e até mais semanas (as semanas previstas na lei do aborto).
- Mas a pior fraqueza deste argumento é que foge ao problema que pretendia resolver. Falar de um conflito de direitos no caso da experimentação com embriões, coloca os direitos do embrião em conflito com os direitos (da sociedade ou de cada indivíduo da sociedade) ao progresso da medicina. Simplesmente, é previsível que a medicina avance com a experimentação em embriões, com a experimentação em fetos, com a experimentação em bebés, com a experimentação em adolescentes, adultos, e idosos. É fácil acreditar que a medicina avançaria imenso no combate a Alzheimer e outras doenças fazendo experiências destrutivas com os próprios doentes e com pessoas saudáveis. Por isso repito a pergunta 4. que formulei acima: É lícito usar o leitor em experiências científicas destrutivas (em nome do direito ao progresso da medicina)? Se não é lícito usar o leitor e é lícito usar embriões, onde se coloca a linha r? Como é óbvio, o apelo ao paralelo com o aborto é um caso típico de fuga à questão.
Curas Fantásticas
A experimentação, mediante regulamentação muito rigorosa,
deve ser permitida atendendo às curas maravilhosas que se espera obter e que
serão um benefício para toda a humanidade. Esta
posição não tem fundamento pelas seguintes razões.
- A primeira pergunta que ocorre é esta: porque é necessária uma regulamentação muito rigorosa? A isto respondeu-se que o embrião merece respeito. Pois bem: porquê? Porque merece respeito?
- Para mais, podem-se obter curas maravilhosas fazendo experiências com embriões, fetos, e adultos. Será que isso basta para que se possam sacrificar adultos em experiências destrutivas? Não. Então é preciso explicar onde está a linha r que separa os embriões dos adultos.
- Os fins justificam os meios? Depende?! Então explique-se o que têm os embriões de peculiar para que no caso deles os fins justifiquem os meios.
- Poderia não haver nenhuma alternativa às experiências com embriões, e ainda assim elas seriam inaceitáveis até prova em contrário. Curiosamente, não só estas experiências parecem impossíveis de defender como, no estado actual da ciência, são desnecessárias. Não existe nenhuma evidência de que a medicina regenerativa venha a lucrar mais com as células embrionárias do que com as células estaminais adultas.[4] E, enquanto a investigação com células embrionárias é um poço de sarilhos (a ponto de ser precisa esta Comissão e muitas semelhantes pelo mundo fora), no campo da investigação com células estaminais adultas não há reservas de ninguém. Por tudo isso, a opção mais sensata parece ser canalizar os meios financeiros para um caminho muito promissor e pacífico, em vez insistir num caminho ínvio, indefensável, e que divide recursos, vontades e pessoas.
Citoplasma e Núcleo
Sendo um clone um citoplasma (sem qualquer valor nem
direitos) e o núcleo de uma célula da pele (igualmente sem valor nem direitos),
temos que a junção dos dois não tem valor. Logo deve ser autorizada a
experimentação com clones, tal como ninguém levanta obstáculos à experimentação
com um citoplasma ou com células da pele. Esta
posição não tem fundamento pelas seguintes razões.
- Está-se a exportar para o todo as propriedades das partes; é a chamada Falácia da Composição.
- Este argumento, além disso, prova demasiado. Uma vez que qualquer zigoto resulta da junção de um óvulo com um espermatozoide (células sem valor nem direitos) o resultado, aplicando o argumento acima, também não tem valor nem direitos. Portanto, poder-se-ia fazer experiências com qualquer zigoto, independentemente da forma como ele foi originado.
- Para mais, qualquer pessoa é composta por milhões de células que individualmente nem têm valor nem direitos. Logo também a pessoa os não teria.
- Assim, colocando a linha r na qualidade (valor e direitos) dos componentes (células, moléculas, átomos) do ser em causa, todos os seres humanos ficam do mesmo lado dessa linha e portanto ela não permite discriminar ninguém: ou se faz experiências com todos ou com ninguém.
Concepção
Aceito que a vida humana deva ser respeitada da concepção até
à morte. Contudo no caso da clonagem não existe concepção e portanto é aceitável
usar os clones em experiências. Esta posição não tem
fundamento pelas seguintes razões.
- Se os portugueses têm direito à vida, posso matar os espanhóis. O facto de um grupo não estar abrangido por um princípio que garante um certo direito, não implica que esse grupo não tenha esse direito garantido por um outro princípio qualquer. Nomeadamente, o Artigo 24ª da Constituição não faz referência à concepção: diz simplesmente que a vida humana é inviolável. Porque não se aplica este princípio ao embrião?
- A expressão proteger a vida humana desde a concepção até á morte natural significa simplesmente que a vida humana deve ser sempre protegida. Concepção e morte são dois marcos, meros delimitadores de tempo, delimitadores do intervalo durante o qual a vida humana deve ser protegida. Atribuindo grande ênfase à palavra concepção (que a não tem) acaba por se desvirtuar a ideia fundamental do princípio exposto.
- Por outro lado, imaginemos, por exemplo, que se dá a concepção. Depois o zigoto divide-se em dois, e as células separam-se originando dois gémeos (homozigóticos). Estes gémeos surgiram da separação das células (e não da concepção que só originou um zigoto). Logo os irmãos gémeos (homozigóticos), uma vez que não resultaram de uma concepção, poderiam ser usados em experiências; já os gémeos heterozigóticos não poderiam ser sujeitos a experimentação.
- Para mais é difícil provar que na clonagem não houve concepção. Como se viu acima, a clonagem é uma forma de fazer gémeos verdadeiros desfasados no tempo. A diferença entre um gémeo verdadeiro resultante de uma cisão e o gémeo resultante da clonagem está no tempo. A informação genética dos dois gémeos verdadeiros resultou de um processo de concepção, o mesmo processo que originou a informação genética do gémeo obtido por clonagem. Na origem da informação genética de um ser humano, de dois gémeos verdadeiros ou de um clone, está um processo de concepção. Sabe-se há muito que uma só concepção pode originar (artificial ou naturalmente) vários seres humanos (durante um período relativamente curto). Hoje existe (em teoria) a técnica que permite prolongar esta possibilidade indefinidamente no tempo. Mas é sempre uma concepção que está na origem.
- A operação seguinte é uma operação de somar ou multiplicar?
Parece de somar, mas de facto é
de multiplicar porque o que eu fiz foi multiplicar o 2 do canto inferior direito
pelos dois algarismos da linha de cima, e depois interrompi a conta. Portanto,
parece uma conta de somar, mas é de facto uma conta de multiplicar
incompleta. Para saber se a conta é de somar ou multiplicar, é crítico saber
qual o processo, o procedimento, o algoritmo que está a ser
usado no seu desenvolvimento.
f.
O mesmo se diga de um ser vivo. Todos os
seres vivos estão permanentemente a modificar-se, mas cada espécie tem um
procedimento, um algoritmo de modificação próprio. A vida de cada um é uma
mudança constante conduzida por esse procedimento bem definido que é o seu
código genético. O ponto crucial é que o procedimento que determina o
desenvolvimento do clone humano é não só um procedimento característico dos
seres humanos como, melhor ainda, um procedimento igual ao de outro ser humano.
E portanto a pergunta que se coloca agora é esta: de onde aparecem os
procedimentos que determinam um desenvolvimento humano? Aparecem de um processo
de concepção. Sem prejuízo de se poderem vir a descobrir outras formas, neste
momento só há uma maneira de arranjar um tal algoritmo. No processo de clonagem
não se inventa nem cria um algoritmo: usa-se um já criado. Portanto se temos um
organismo a desenvolver-se segundo um algoritmo humano, na sua origem está
necessariamente uma concepção, a fusão de um gâmeta feminino humano com um
gâmeta masculino humano.
Ultrapassar Limites
Muitos progressos médicos foram
obtidos porque alguém violou regras estabelecidas. É um erro estar hoje a
colocar entraves ao trabalho dos cientistas proibindo experiências com embriões
excedentários ou clonados.
a.
Este argumento não estabelece nenhuma
linha de separação. Muitos progressos em medicina foram conseguidos violando
regras relativamente a embriões e a adultos sem que isso justifique experiências
destrutivas com o leitor.
b.
Aceitando este argumento relativamente
aos embriões, abrem-se as portas a que todos os limites possam ser
ultrapassados. Afinal se ninguém consegue distinguir o embrião do feto (se
ninguém consegue localizar a linha r), sendo aceitável quebrar limites
com os embriões, passará a ser aceitável quebrar limites com os fetos (caso
venha daí algum benefício), e assim por diante.
c.
A violação de limites originou
descobertas importantes, mas originou também imensos horrores e o consequente
aparecimento de códigos deontológicos. A verdade é que a experimentação com
embriões não coloca um problema novo: já hoje se poderiam violar muitos limites
(códigos deontológicos, convenções, tratados, etc.) na esperança de encontrar
muitas curas.
d.
Em última análise este argumento sugere
que a investigação científica deve ser a selva total e absoluta em nome dos
benefícios que eventualmente surgirão daí, esquecendo que se é verdade que
algumas curas surgiram da violação dos limites, também muitos horrores foram
feitos. Por exemplo, a montanha de experiências abomináveis feitas nos campos de
concentração nazis pariu o ratinho enfezado do tratamento para a hipotermia.
Muitos médicos condenados em Nuremberga, muitas pessoas mortas, um pequeno
benefício, e uma revolta da sociedade que se pôs de acordo para acabar com
episódios deste tipo, criando códigos de deontologia e regulando experiências
com seres humanos mesmo sabendo que isso poderia adiar o progresso da ciência.
Atendendo aos dois pratos da balança, o que acabou por pesar mais foi a
necessidade de não deixar a investigação médica converter-se numa selvajaria.
Conclusão
Julgo que tratei a maioria das razões apresentadas na Comissão
em defesa da discriminação, em defesa da ideia de que há seres humanos de
primeira e seres humanos de segunda. Uma vez que parece não haver forma de
justificar a discriminação de seres humanos, teremos de tratar os seres humanos
em causa com o mesmo respeito que nos merece qualquer adulto. Assim a orientação
que emerge parece ser a seguinte:
1.
As experiências com embriões
excedentários, resultantes de tratamentos de fertilidade, só pode ser permitida
ao abrigo da Declaração de Helsínquia (de 1964, revista em Tóquio em
1975). Esta declaração regula as experiências com seres humanos (como o leitor
ou eu) e portanto regula a experimentação com todos os seres humanos
essencialmente iguais a mim ou ao leitor, o que, até prova em contrário,
inclui todos os seres humanos: idosos humanos, adultos humanos,
adolescentes humanos, crianças humanas, bebés humanos, fetos humanos, embriões
humanos.
2.
A Convenção Europeia dos Direitos
Humanos e Biomedicina, assinada por Portugal, proíbe a criação de embriões
para serem usados em investigação[5]
pelo que o nosso País está já obrigado por tratado internacional a responder
negativamente á segunda pergunta que foi colocada à Comissão. Além disso, as
técnicas de reprodução medicamente assistida que originam embriões excedentários
(felizmente uma pequena minoria dentro destas técnicas) devem ser proibidas,
dado o facto de criarem um problema para o qual não se vê nenhuma solução
eticamente aceitável. Portanto, não só é inaceitável criar seres humanos com o
único objectivo de os usar em experiências, como o simples uso de técnicas de
reprodução medicamente assistida que originem embriões excedentários deveria ser
proibido.
3.
A clonagem humana experimental, seja
qual for a intenção com que é praticada, deve ser totalmente proibida. Isto
resulta da aplicação imediata do ponto anterior dado que neste momento, e
durante muito tempo, a clonagem consistirá em criar embriões para
experimentação. Para mais existe um consenso esmagador quanto à rejeição da
clonagem com fins reprodutivos pelo que, sendo a clonagem com fins terapêuticos
ainda mais repugnante, sinistra e eticamente indefensável (para além de,
aparentemente, ser desnecessária atendendo aos resultados obtidos com células
estaminais adultas), por maioria de razão, deve ser proibida.
4.
A análise dos pontos que foram postos à
consideração da Comissão não pode fazer esquecer o facto de que nestas matérias
existem muitas mais questões por regulamentar e que é fundamental a criação de
um Estatuto Jurídico do Embrião Humano que permita reconhecer direitos
essencialmente iguais a seres humanos que, até prova em contrário, são
essencialmente iguais a mim e ao leitor.
João Araújo
[1] De facto o Acrodão do Tribunal
Constitucional nº85/85 de 29 de Maio de 1985 e publicado no Diário da
República, II Série, nº143, 25 de Junho de 1985, na parte nuclear da
argumentação comete este erro completamente grosseiro, mas infelizmente
muito popular, de confundir conjecturas com factos.
[2] Acordão do Tribunal Constitucional
nº 25/84 de 19 de Março de 1984, DR, II Série, nº8, 4 de Abril de 1984.
[3] S. Milgram, Obedience to Authority, London:
Tavistock, 1974. Ver também, Z. Bauman, Modernity and the Holocaust,
Cornell University press, New York, 1989, cap. 6.
[4] Recentemente foi publicado um
artigo científico no qual os autores sugeriam que a investigação com
células estaminais adultas não levaria muito longe, mas este artigo foi
pronta e categoricamente desmentido por vários especialistas.
[5] Artigo 18, nº2: The creation of human embryos
for research purposes is prohibited.
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