Na quinta-feira, 13 de Março, o Senado dos Estados Unidos aprovou um Decreto, no qual proscreve legalmente a prática do aborto com nascimento parcial ("partial-birth abortion"). As diversas tentativas precedentes para proibir esta forma de aborto tinham-se deparado, por duas vezes, com o veto do então Presidente Clinton. Nesta ocasião, ao contrário, as tentativas de aprovar esta lei tiveram êxito positivo e, considerado o forte apoio a esta medida legislativa por parte do Presidente Bush, e a previsível ampla maioria favorável na Câmara dos Representantes, pode-se falar de uma grande meta conseguida em defesa da vida. Depois da sentença "Roe vs. Wade" dos anos 70, na qual se abria o caminho ao aborto legal, esta aprovação insere-se entre os êxitos mais relevantes na promoção do direito à vida nos Estados Unidos.
A expressão partial-birth abortion, aborto com nascimento parcial, designa uma técnica de aborto utilizada nos últimos meses de gravidez, durante a qual é praticado um parto intravaginal parcial do feto vivo, seguido de uma aspiração do conteúdo cerebral antes de completar o parto. Esta técnica pôde ser legalmente utilizada nos Estados Unidos depois da decisão da Alta Corte Federal de Justiça Roe vs. Wade de 1973, que autorizou os diversos Estados a assumir disposições que permitam os abortos provocados.
A razão de ser do desenvolvimento deste método é de ordem legal: tendo a Corte Suprema dos Estados Unidos deliberado que a palavra "pessoa", do modo como é usada na 14ª emenda da Constituição, não se aplica ao nascituro, deduziu-se a possibilidade de pôr termo à vida deste nascituro sem incorrer em acções judiciais, e isto até ao momento do parto. Em contrapartida, todas as leis dos diversos Estados esclarecem que, durante o parto, quando um nascituro saiu completamente do útero materno, e quando manifesta até o mais pequeno sinal de vida, ele já é pessoa diante da lei, de forma que privá-lo deliberadamente da vida seria um homicídio a nível legal. Em contrapartida, é legalmente possível privar esta criança da vida, durante o parto, sob condição de que esteja parcialmente no útero.
Segundo os seus promotores, trata-se de um gesto rápido, podendo ser praticado sem hospitalização, com anestesia local. A intervenção é precedida de uma preparação de três dias, com dilatação mecânica do cólon uterino. A operação desenvolve-se em cinco fases: num primeiro tempo, quem opera, guiado por ultra-sons, depois da eventual inversão, se necessário for, da posição do feto no útero, prende os seus pés com uma pinça. Em seguida, com uma tracção tira o feto para fora do útero e provoca o parto, extraindo todo o corpo da criança, excepto a cabeça. Quem pratica o aborto executa então um corte na base do crânio do nascituro, através do qual faz passar a ponta de umas tesouras para furar a caixa craniana. Depois, introduz no orifício assim predisposto a extremidade de um tubo fino evacuativo, através do qual é aspirado o cérebro e o conteúdo da caixa craniana do menino. A este ponto, para concluir o aborto, só falta extrair a cabeça reduzida de volume.
Ao que parece, esta técnica talvez tenha sido começada em 1979, como alternativa à técnica mais habitual para os abortos tardios (que consistia em injectar no feto uma droga mortal, e por conseguinte extraí-lo, desmembrando-o). Um projecto de lei, que visava proibir o partial-birth abortion, foi apresentado em 14 de Junho de 1995 à Câmara dos Representantes do Congresso dos Estados Unidos. O Presidente Clinton dera a conhecer a 28 de Fevereiro a sua posição. O projecto de lei foi, apesar disso, apresentado a 5 de Abril ao Presidente Clinton, que lhe opôs o seu veto em 10 de Abril. Para superar o veto presidencial, era pedida ao Congresso uma maioria de dois terços, o que então era impossível. Para justificar o seu veto, o Presidente Clinton, durante uma conferência de imprensa, a 10 de Abril de 1996, apresentou aos jornalistas quatro testemunhos de pessoas que tinham sido submetidas a um aborto com nascimento parcial. Em 16 de Abril de 1996, oito Cardeais americanos e o Presidente da Conferência Episcopal escreveram ao Presidente Clinton para manifestar a sua "consternação" pelo veto por ele dado ao projecto de lei. Nessa Carta avisavam o Presidente do risco de "fazer com que o País desse mais um passo na aceitação do infanticídio", e denunciavam uma "cultura de morte" que se estava a difundir, e mencionavam também as "recentes decisões das duas cortes federais de apelo que procuram legalizar o suicídio assistido". Na sua resposta, o Presidente Clinton declara estar disposto a assinar a lei se fossem excluídos os casos de risco para a saúde da mulher, uma forma de reduzir praticamente a nada o alcance da lei. Em seguida, 27 milhões de cartas-petição enviadas pelos fiéis de todas as Dioceses dos Estados Unidos ficaram acumuladas no correio da Casa Branca, protestando contra o veto presidencial.
A 20 de Setembro de 1998, o Senado dos Estados Unidos não conseguiu, numa segunda tentativa, superar o veto presidencial: 64 senadores votaram a favor do projecto de lei, mas para anular o veto presidencial seriam necessários mais três (69 em 100). Mas os Estados já se tinham dotado de uma legislação para proibir localmente o procedimento. Em Outubro de 1999, o projecto de proibição do aborto com nascimento parcial foi novamente apresentado às Câmaras, mas também desta vez faltaram dois votos. Por fim, em 29 de Junho de 2000, a Corte Suprema dos Estados Unidos, com uma decisão de 5 votos contra 4, decretou que o projecto de lei do Estado do Nebraska, que pretendia proibir o procedimento, não era aceitável, o que voltou a pôr em discussão todas as leis do mesmo género aceites anteriormente pelos diversos Estados. Após esta decisão, os juízes federais anularam as leis que impediam a prática do aborto com nascimento parcial nos Estados de Michigan, de Illinois, e de Wisconsin. Em Setembro de 2001, coube ao estado de Ohio ver a própria lei proibida por um alto juiz federal.
Com a mudança da administração na Casa Branca, podia-se esperar bem depressa uma mudança da situação. Mas, de facto, uma tal mudança não se podia realizar, dado que o Partido republicano estava em minoria no Congresso. Além disso, depois de 11 de Setembro, os homens políticos americanos tiveram outras preocupações consideradas mais urgentes. Mas, o número de abortos com nascimento parcial feitos nos Estados Unidos multiplicou-se nos últimos três anos, passando de 650 em 1996 para 2.200 em 2000. Isto representa 0,17% de todos os abortos legais provocados.
Depois da recente inversão da maioria no Congresso, foi apresentada à Câmara dos Representantes, a 19 de Junho de 2002, uma nova proposta de lei (H.R. 4965), destinada a inverter a decisão da Corte Suprema de 29 de Junho de 2000, com a finalidade de proibir o seu uso. A House Judiciary Subcommittee aprovou o projecto a 11 de Julho de 2002, e a Câmara dos Representantes votou com 274 votos contra 151, tendo o apoio de 65 Democratas, em 24 de Julho, a favor do Decreto. Era a quarta vez que a Câmara dos Representantes aprovava um projecto de lei para proibir o procedimento de aborto tardio. Com a mudança do majority leader do Senado, em Novembro de 2002, este projecto de lei foi apresentado ao Senado. O Presidente Bush, numa declaração feita em 22 de Janeiro de 2003, convidou vigorosamente o Congresso a votar a nova lei, e recordou esta mensagem no seu State of Union Address em 28 de Janeiro. Desta vez, o projecto passou o exame da Comissão do Senado, em 31 de Janeiro. Os senadores introduziram o Decreto que se chama "S.3", no debate do Senado de quinta-feira 13 de Fevereiro de 2003, e o debate começou em 11 de Março. No mesmo dia, o Presidente Bush exprimiu de novo o seu forte apoio a esta lei. O Senado dos Estados Unidos, com 64 votos contra 33, votou a lei em 13 de Março, pondo assim fim a um debate que começou oito anos antes.
Este debate realçou em algumas intervenções uma extrema pobreza antropológica em relação ao embrião humano, além de atitudes arbitrárias e permissivas. Enquanto alguns Estados da América admitem o aborto no prazo de dez semanas, outros admitem-no no espaço de 12, e outros ainda de 13. Poder-se-ia dizer, com Pascal: "Verdade para cá dos Pirenéus, erro além deles"! (Pensamentos, V, 294). Por conseguinte, o limite extremo da possibilidade do aborto já não é o nascimento, mas o nascimento completo. Tudo isto deixa intuir como as consequências do positivismo jurídico conduzem, mais cedo ou mais tarde, à inconsistência do arbítrio obstinado e prepotente, e como prevalecem, sobre o juízo sensato e sereno, as imposições de um poder arbitrário, fechado ao reconhecimento, entre os direitos humanos fundamentais, daquele que é o principal de todos, isto é, o direito à vida de qualquer pessoa humana. Tal é, de facto, o nascituro.
Apesar de tudo, a verdade, mesmo vacilante, prossegue. Deparamo-nos com um momento de lucidez dos legisladores, quando estes compreendem que já não se pode suportar que um crime deste alcance e desumanidade contra a dignidade humana não suscite a reacção, e por conseguinte, a sanção, do ordenamento jurídico. Neste sentido, não se pode deixar de realçar a atitude diferente, em toda esta vicissitude, dos Presidentes Clinton e Bush.
O recente voto do Senado norte-americano não representa apenas um acontecimento legislativo de notável importância na construção de uma cultura da vida, mas supõe também a afirmação de uma nova atitude nos legisladores, que procede de uma progressiva, lenta mas autêntica, mudança da mentalidade do povo dos Estados Unidos. Além de certos elementos nos quais a atitude do Senado ainda permanece ligada ao peso das políticas recentes (a declaração que a Sentença Roe vs. Wade foi "apropriada" e que esta lei não deseja estar contra o "direito" ao aborto ou à excepção feita em relação a uma eventual liceidade jurídica das práticas realizadas em caso de perigo para a vida da mãe), é muito significativo o reconhecimento do facto que o aborto com nascimento parcial é uma prática desumana e terrível, que merece plenamente a qualificação de crime e deve ser punida pelas leis.
Anteriormente, o sentimento de horror dos americanos em relação a esta prática barbárica, cuja eliminação foi começada pelo Senado dos Estados Unidos na quinta-feira, 13 de Março, deparou-se com fortes resistências legais, sobretudo nas Cortes Supremas e, finalmente, por duas vezes, no veto do Presidente Clinton, que considerou oportuno aceitar as vozes discrepantes. Mas desta vez, o projecto tem a probabilidade de passar o limiar de um amplo consentimento entre os legisladores da Câmara dos Representantes. Também é conhecida a clara e decidida vontade do Presidente Bush de não opor, desta vez, o veto.
Os argumentos apresentados por cada uma das partes nas várias fases deste debate, permaneceram mais ou menos invariados. O principal argumento apresentado nas tentativas legislativas precedentes de se opor à proibição desta prática abortiva, isto é, o receio de que esta medida acabe por se traduzir num deterioramento dos direitos da mulher, só conseguiu obter, nesta ocasião, escassos consentimentos. De facto, são poucos os que ainda pensam que os direitos da mulher são danificados, se o aborto com nascimento parcial dos nascituros de 20 semanas, ou até poucas semanas antes do nascimento, for proclamado pela lei.
Neste sentido, é evidente o progresso da cultura da vida. Vai crescendo dia após dia a convicção de que existe uma profunda sintonia entre o valor da vida e a dignidade da mulher: o direito à vida e os direitos da mulher não só não são incompatíveis (como é postulado por um certo feminismo radical) mas até estão em estreita relação entre si. Tanto o primeiro como os outros, de facto, estão fundados na mesma lei natural. Os crentes reconhecem a origem última desta dinâmica natural dos direitos e dos deveres em Deus.
A percepção de uma sintonia entre direito à vida e dignidade da mulher, que está na base da proibição do aborto com nascimento parcial, supõe um lento mas real progresso da percepção da existência de uma lei natural. Manifestação desta percepção é a mais aguda sensibilidade do direito à vida de cada ser humano: esta sensibilidade situa-se num conjunto de valores de respeito em relação ao ambiente, à natureza e, em primeiro lugar, aos direitos humanos. Uma sensibilidade e uma convicção que devem alcançar o mundo da política, do Estado e das instituições internacionais, assim como a sociedade e a cultura.
No seu discurso de 5 de Outubro de 1995 à Assembleia Geral das Nações Unidas, a propósito da Declaração Universal dos Direitos do Homem, formulada depois dos desastres da Segunda Guerra Mundial, o Santo Padre afirmava que os direitos humanos (o direito à vida é fundamento de todos os outros direitos) encontram a sua raiz na natureza da pessoa e reflectem as exigências objectivas e imprescindíveis da lei moral universal: "Recordam-nos também que não vivemos num mundo irracional ou privado de sentido, mas que, ao contrário existe uma lógica moral que ilumina a existência humana e torna possível o diálogo entre os homens e entre os povos. Se queremos que um século de coacções ceda o lugar a um século de persuasão, devemos encontrar o caminho para discutir, com uma linguagem compreensível e comum, acerca do futuro do homem.
A lei moral universal, inscrita no coração do homem, é aquela espécie de "gramática" de que o mundo tem necessidade para enfrentar este debate sobre o seu futuro". Como é possível que a humanidade tenha tanta dificuldade em reconhecer esta "gramática", e que a proibição do aborto com nascimento parcial tenha chegado com tanto atraso? A persistência de uma modalidade tão cruel de pena de morte sobre um menino inocente explica-se com a suposição de que o nascituro não é "pessoa" enquanto o seu nascimento não for completo. Mas esta arbitrariedade e teimosia no uso da palavra "pessoa" não revela porventura uma verdadeira e própria contradição com os postulados mais óbvios da "lógica moral"?
Se o aborto com nascimento parcial for proibido nos Estados Unidos pela Câmara dos Representantes (como tudo parece indicar), estaremos na presença de um verdadeiro progresso, não só da cultura da vida, mas também de uma disciplina legal mais conforme com ela, uma disciplina radicada numa compreensão mais profunda das exigências da dignidade humana, e numa percepção mais aguda da profunda sintonia entre direito à vida e dignidade da mulher.
Notas
1) Ela foi apresentada ao público em 1993 pelo Dr. Martin Haskell de Dayton (Ohio).
2) Esta legislação, definida Partial Birth Abortion Ban Act (H.R. 1833), proposta pelo Representante Charles Canady e pelo Senador Robert Smith, obteve a aprovação das duas Câmaras, a 3 de Janeiro de 1996.
3) O Presidente Clinton admitia, nesta carta, que o procedimento tem algo que choca: The procedure described in H.R. 1833 is very disturbing, and I cannot support its use on an elective basis, where the abortion is being performed for non-health related reasons and there are equally safe medical procedures available. Contudo o Presidente acrescenta que existem casos raros em que, segundo conselho médico, o procedimento pode ser necessário to save a woman's life or to preserve her health.
4) Nesta carta afirma-se: Dear President Clinton, it is with deep sorrow and dismay that we respond to your 10 veto of the Partial-Birth Abortion Ban Act. Your veto of this bill is beyond comprehension for those who hold human life sacred. It will ensure the continued use of the most heinous act to kill a tiny infant just seconds from taking his or her first breath outside the womb... Mr. President, Your action on this matter takes our nation to a critical turning point in its treatment of helpless human beings inside and outside the womb... It moves our nation one step forward toward acceptance of infanticide. São recusadas as argumentações do Presidente Clinton relativas à necessidade de consentir o procedimento do aborto parcial nalguns casos dramáticos: Most partial-birth abortions are done for reasons that are purely elective, especificando que consentir abortos tardios por "razões de saúde" significaria aceitar todos os pedidos de aborto, sem lhes pôr limite algum.
5) João Paulo II, Discurso à 50ª Assembleia Geral das Nações Unidas, 5/10/1995, n. 3.
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