1. Inspiração: que é?

a) Quando se fala de inspiração bíblica, talvez aflore à mente a noção de ditado mecânico, semelhante ao que o chefe de escritório realiza junto à sua datilógrafa; esta possivelmente escreve coisas que não entende e que são claras apenas ao chefe e à sua equipe.

Oral tal não é a inspiração bíblica. Ela não dispensa certa compreensão por parte do autor bíblico (= hagiógrafo) nem a sua participação na redação do texto sagrado.

b) A inspiração bíblica também não é revelação de verdades que o autor humano não conheça. Existe, sim, o carisma (= Dom) da Revelação, que toca especialmente aos Profetas, mas é diverso da inspiração bíblica; esta se exercia, por exemplo, quando o hagiógrafo descrevia uma batalha ou outros fatos documentados em fontes históricas, sem receber revelação divina.

c) Positivamente, a inspiração bíblica é a iluminação da mente do autor humano para que possa, com os dados de sua cultura religiosa e profana, transmitir uma mensagem fiel ao pensamento de Deus. Além de iluminar a mente, o Espírito Santo fortalece a vontade e as potências executivas do autor para que realmente o hagiógrafo escreva o que ele percebeu; (cf. 2 Pd 1,21). As páginas que assim se originam, são todas humanas (Deus em nada dispensa a atividade redacional do homem) e divinas (pois Deus acompanha passo a passo o trabalho do homem escritor). Assim diz-se que a Bíblia é um livro divino-humano, todo de Deus e todo do homem; transmite o pensamento de Deus em roupagem humana; assemelha-se ao mistério da Encarnação, pelo qual Deus se revestiu da carne humana (judeu, grego, arcaico, com todas as particularidades de expressão).

Importa frisar bem o fato de que a inspiração bíblica não dispensa os esforços do autor sagrado; ele trabalha como qualquer outro escritor, até mesmo hesitando e voltando atrás, como aconteceu a São Paulo em 1Cor 1, 14-15:

"Dou graças a Deus por não ter batizado ninguém de vós a não ser Cristo e Caio. Assim ninguém pode dizer que foi batizado em meu nome. É verdade, batizei também a família de Estéfanas; quanto ao mais, não me recordo de ter batizado algum outro de vós".

Deus jamais hesitaria à semelhança de São Paulo no texto atrás nem falaria como o autor de 2 Mc 2,19-32, de modo que, se quiséssemos seguir o arrazoado do nosso missivista; deveríamos eliminar do catálogo bíblico também a 1 Cor. Pergunta-se então

2. Como se reconhece a inspiração?

Têm sido propostos vários critérios para se reconhecer como algum livro é inspirado. Ei-los:

1) Conteúdo edificante. Sem dúvida, deve-se reconhecer que há belíssimas passagens na Bíblia, aptas a reconfortar e edificar. Mas não se pode negar a existência de secções pouco edificantes como são guerras, homicídios, o incesto das filhas de Lote (Gn 19, 30-38)... isto é tão evidente que a Regra de São Bento (século VI) proíbe a leitura de certos livros no ofício de Completas (oração da noite):

"Não se leia o Heptateuco ou o livro dos Reis, porque não seria útil às inteligências fracas ouvir tais partes da Escritura nessa hora" (cap. 42).

2) Esmerado estilo literário. De fato há nas Escrituras de grande beleza literária, como são as do Profeta Isaías, alguns trechos de São Paulo (1Cor 13, 1-13; 1,17-31; Rm 8,31-39). Mas também há na Bíblia secções mal construídas, inacabadas, falhas no tocante à gramática, principalmente o Apocalipse, o livro do vidente comete erros que em português correspondem  a "nós vai, eles diz" (...).

3) Autoria de Patriarca, Profeta ou Apóstolo. Também este critério é falho, pois há livros sagrados cujos autores ignoramos ou são discutidos. Um livro pode ser inspirado e canônico sem que saibamos quem o escreveu.

4) Para os livros do Antigo Testamento, seria critério de inspiração o fato de serem citados por Jesus ou algum Apóstolo. Observa-se, porém, que não são (nem implicitamente) citados no Novo Testamento livros que, de resto, todos os cristãos têm como canônicos; assim Eclesiastes, Ester, Cântico dos Cânticos, Esdras, Neemias, Abdias, Naum, Rute, Provérbios.

 

5) A Tradição oral.  Este é o único critério aceito, de resto também muito lógico. Com efeito, a Palavra de Deus foi anunciada primeiramente de viva voz; a escrita (bíblica) é o eco e a cristalização da palavra oral, de modo que esta aponta, recomenda e explicita a palavra escrita. A Tradição oral tem seu porta-voz no magistério da Igreja assistido pelo Espírito Santo.

Formula-se uma objeção: a tradução grega dita dos Setenta foi adotada pelos Apóstolos e escritores do Novo Testamento. Ora tal versão contém, além dos livros canônicos e deuterocanônicos, vários outros que a Tradição oral e o Magistério da Igreja não assumiram assim 3/4 Macabeus, 3/4 Esdras, Odes de Salomão... Não parece isto um jogo arbitrário, que Deus não terá inspirado? - Em resposta, observamos que não podemos impor critérios a Deus. O cânon bíblico, proveniente por vias autênticas, contém 73 livros. Isto é um fato que o teólogo não discute, mas aceita num ato de fé. A teologia parte deste princípio: há 73 livros sagrados. Poderiam ser mais numerosos, poderiam ser menos. A teologia é a ciência que procede da fé, procura ilustrar as verdades da fé.

3. Como saber se um livro é canônico?

Livro canônico é o livro incluído no cânon ou no catálogo sagrado. Pois bem, há dois tipos de livros canônicos: os protocanônicos e os deuterocanônicos.

Protocanônicos são os livros catalogados em primeira instância (proton = primeiro) sem ter sido controvertidos

Deuterocanônicos são os livros catalogados deuteron ou em segunda instância, após ter sido controvertidos são os sete seguintes: Tobias, Judite, Eclesiástico, Baruque, Sabedoria, 1/2 Macabeus, fragmentos de Estes e Daniel. Tais escritos foram controvertidos ente os cristãos dos primeiros séculos, porque não eram aceitos pelos judeus da Palestina (mas sim pelos de Alexandria). As hesitações cessaram no fim do século IV, quando o Concílio Regional de Hipona em 393 definiu o cânon como ele é hoje, com seus 73 livros.

Para os católicos, os livros deuterocanônicos do Antigo Testamento são tão valiosos como os protocanônicos; são a Palavra de Deus inerrante, que, aliás, os próprios judeus da Palestina estimavam e liam como textos edificantes. Por exemplo, os próprios rabinos serviam-se do Eclesiástico até o séc. X como Escritura Sagrada; o 1Mc era lido na festa de Encênia, ou da Dedicação do Templo (Hanukkah), Baruque era lido em alta voz nas sinagogas do séc. IV d. C., como atestam as Constituições Apostólicas. De Tobias e Judite temos midrachim ou comentários em aramaico, que atestam como tais livros eram lidos na sinagoga.

Aliás, o próprio Lutero traduziu para o alemão os livros deteurocanônicos: na sua edição alemã datada de 1534 o catálogo é o dos católicos - o que bem mostra que os deuterocanônicos eram usuais entre os cristãos. Não foi o Concílio de Trento que os introduziu no cânon. De resto, as Sociedades Bíblicas protestantes até o séc. XIX incluíam os deuterocanônicos em suas edições da Bíblia.