É Razoável Crer?
sábado, 21 de julho de 2012
« Deus não fez a morte, nem se alegra que pereçam os vivos » (Sab. 1, 13).
É certo que Deus criou seres que não têm senão uma duração limitada e que a morte física não pode estar ausente do mundo dos viventes corporais. Mas, aquilo que é querido, antes de mais nada, é a vida; e, no universo visível, tudo foi feito em vista do homem, imagem de Deus e coroamento do mundo (cfr. Gén. 1, 26-28).
No plano humano, foi « por inveja do demónio que a morte entrou no mundo » (Sab. 2, 24); introduzida pelo pecado, ela permanece a ele ligada; ela é dele o sinal e o fruto. No entanto, ela não poderá triunfar. Confirmando a fé na ressurreição, o Senhor proclamará no Evangelho que « Deus ... não é o Deus dos mortos, mas dos vivos » (Mt. 22, 32-33); e a morte, bem como o pecado, será vencida, definitivamente, pela ressurreição em Cristo (cfr. 1 Cor. 15, 20-27).
Compreende-se assim que a vida humana, mesmo sobre a terra, seja algo precioso. Insuflada pelo Criador, é por Ele que ela será reassumida (cfr. Gén. 2, 7; Sab. 15, 11). Ela permanece sob a sua protecção; o sangue do homem clama por Ele (cfr. Gén. 4, 10) e Ele pedirá contas desse sangue, « porque o homem foi criado à semelhança de Deus » (Gén. 9, 5-6).
0 mandamento de Deus é formal: « Não matarás » (Ex. 20, 13). Ao mesmo tempo que é um dom, a vida é também uma responsabilidade: recebida como um « talento » (cfr. Mt. 25, 14-30), ela deve ser posta a render. Para a fazer frutificar, muitas são as tarefas que ao homem se apresentam neste mundo, às quais ele não deve furtar-se; mas, de uma maneira mais profunda ainda, para o cristão, pois ele sabe bem que a vida eterna para ele depende daquilo que, com a graça de Deus, fizer durante a sua vida sobre a terra.
A tradição da Igreja sempre considerou a vida humana como algo que deve ser protegido e favorecido, desde o seu início, do mesmo modo que durante as diversas fases do seu desenvolvimento. Opondo-se aos costumes greco-romanos, a Igreja dos primeiros séculos insistiu na distância que, quanto a este ponto, separa deles os costumes cristãos.
No livro chamado Didaché diz-se claramente: « Tu não matarás, mediante o aborto, o fruto do seio; e não farás perecer a criança já nascida » .
Atenágoras frisa bem que os cristãos têm na conta de homicidas as mulheres que utilizam medicamentos para abortar; ele condena igualmente os assassinos de crianças, incluindo no número destas as que vivem ainda no seio materno, « onde elas já são objecto da solicitude da Providência divina » .
Tertuliano não usou, talvez, sempre a mesma linguagem; contudo, não deixa também de afirmar, com clareza, o princípio essencial: « É um homicídio antecipado impedir alguém de nascer; pouco importa que se arranque a alma já nascida, ou que se faça desaparecer aquela que está ainda para nascer. É já um homem aquele que o virá a ser » .
E no decorrer da história, os Padres da Igreja, bem como os seus Pastores e os seus Doutores, ensinaram a mesma doutrina, sem que as diferentes opiniões acerca do momento da infusão da alma espiritual tenham introduzido uma dúvida sobre a ilegitimidade do aborto. É certo que, na altura da Idade Média em que era opinião geral não estar a alma espiritual presente no corpo senão passadas as primeiras semanas, se fazia uma distinção quanto à espécie do pecado e à gravidade das sanções penais. Excelentes autores houve que admitiram, para esse primeiro período, soluções casuísticas mais suaves do que aquelas que eles davam para o concernente aos períodos seguintes da gravidez. Mas, jamais se negou, mesmo então, que o aborto provocado, mesmo nos primeiros dias da concepção fosse objectivamente falta grave.
Uma tal condenação foi de facto unânime. De entre os muitos documentos, bastará recordar apenas alguns.
Assim: o primeiro Concílio de Mogúncia, em 847, confirma as penas estabelecidas por Concílios precedentes contra o aborto; e determina que seja imposta a penitência mais rigorosa às mulheres « que matarem as suas crianças ou que provocarem a eliminação do fruto concebido no próprio seio » .
O Decreto de Graciano refere estas palavras do Papa Estêvão V: « É homicida aquele que fizer perecer, mediante o aborto, o que tinha sido concebido ». Santo Tomás, Doutor comum da Igreja, ensina que o aborto é um pecado grave contrário à lei natural . Nos tempos da Renascença, o Papa Sisto V condena o aborto com a maior severidade.
Um século mais tarde, Inocêncio XI reprova as proposições de alguns canonistas « laxistas », que pretendiam desculpar o aborto provocado antes do momento em que certos autores fixavam dar-se a animação espiritual do novo ser . Nos nossos dias, os últimos Pontífices Romanos proclamaram, com a maior clareza, a mesma doutrina.
Assim: Pio XI respondeu explicitamente às mais graves objecções; Pio XII excluiu claramente todo e qualquer aborto directo, ou seja, aquele que é intentado como um fim ou como um meio para o fim; João XXIII recordou o ensinamento dos Padres sobre o carácter sagrado da vida, « a qual, desde o seu início, exige a acção de Deus criador » . E bem recentemente, ainda, o II Concílio do Vaticano, presidido pelo Santo Padre Paulo VI, condenou muito severamente o aborto: « A vida deve ser defendida com extremos cuidados, desde a concepção: o aborto e o infanticídio são crimes abomináveis » . O mesmo Santo Padre Paulo VI, ao falar, por diversas vezes, deste assunto, não teve receio de declarar que a doutrina da Igreja « não mudou; e mais, que ela é imutável ».
O respeito pela vida humana não se impõe apenas aos cristãos; a razão basta de per si para o exigir, baseando-se na análise daquilo que é e deve ser uma pessoa. Constituído por uma natureza racional, o homem é um sujeito pessoal, capaz de reflectir sobre si próprio e de decidir dos seus actos e, portanto, do seu próprio destino; é livre. É, por consequência, senhor de si; ou melhor dito — porque ele se perfaz a si mesmo no tempo — ele dispõe dos meios para se tornar tal e nisso está o seu dever.
Imediatamente criada por Deus, a sua alma é espiritual e, por isso, imortal. Mais: ele está aberto para Deus e não encontrará senão n'Ele a sua plena realização. No entanto, ele vive na comunidade dos seus semelhantes e nutre-se da comunicação interpessoal com eles, no indispensável meio social. Em face da sociedade e dos outros homens, cada pessoa humana se possui a si mesma, possui a sua vida e os seus diversos bens, à maneira de direito; e isso exige-o da parte de todos os outros em relação a si uma estrita justiça.
Contudo, a vida temporal que se leva neste mundo não se identifica com a pessoa; esta tem como seu próprio um nível de vida mais profundo, que não poderá acabar. Sim, a vida temporal é um bem fundamental, aqui na terra condição de todos os demais bens; mas existem valores mais altos, pelos quais poderá ser lícito e mesmo até necessário expor-se ao perigo de a perder. Numa sociedade de pessoas, o bem comum é para cada uma delas uma finalidade que deve servir, à qual há-de saber subordinar o seu interesse particular. Mas esse bem comum não constitui o seu fim último; e, neste sentido, é a sociedade que está ao serviço da pessoa, porque esta não consumará o seu destino senão em Deus. Ela não pode ser subordinada definitivamente senão a Deus. Nunca se pode tratar um homem como simples meio de que porventura se dispusesse para alcançar um fim mais elevado.
Sobre os direitos e os deveres recíprocos da pessoa e da sociedade, compete à moral esclarecer as consciências e ao direito determinar e organizar os encargos. Ora existe um conjunto de direitos que a sociedade não tem que conceder, porque eles lhe são anteriores; mas que ela tem por dever preservar a fazer valer: tais são a maior parte daqueles que hoje em dia se denominam os « direitos do homem » e que a nossa época se gloria de ter formulado.
O primeiro direito de uma pessoa humana é a sua vida. Ela tem outros bens e alguns deles são mais preciosos; mas este — da vida — é fundamental, condição de todos os demais. Por isso, deve ele, mais do que qualquer outro, ser protegido. Não compete à sociedade, nem compete à autoridade pública, seja qual for a sua forma, reconhecer este direito a alguns somente e não a outros: toda a discriminação aqui é iníqua, quer se fundamente na raça, quer no sexo, quer na cor, quer, enfim, na religião. Não é o reconhecimento por outrem que constitui este direito: ele precede tal reconhecimento; mais: ele exige ser reconhecido e é estritamente injusto recusar reconhecê-lo.
Uma discriminação fundada sobre os diversos períodos da vida não será pois mais justificável do que outra qualquer. O direito à vida permanece na sua inteireza num velhinho, mesmo que este se ache muito debilitado; permanece num doente incurável, este não o perdeu. Não é menos legítimo numa criança que acaba de nascer do que num homem feito. Na realidade, o respeito pela vida humana impõe-se desde o momento em que começou o processo da geração. Desde quando o óvulo foi fecundado, encontra-se inaugurada uma vida, que não é nem a do pai, nem a da mãe, mas a de um novo ser humano, que se desenvolve por si mesmo. Ele não virá jamais a tornar-se humano, se o não for desde logo.
A esta evidência de sempre (absolutamente independente das discussões acerca do momento da animação),a ciência genética moderna traz preciosas confirmações. Ela demonstrou, com efeito, que desde o primeiro instante se encontra traçado o programa daquilo que virá a ser este novo vivente: um homem, este homem indivíduo com as suas notas características já bem determinadas. A partir da fecundação, começou a aventura de uma vida humana, na qual cada uma das suas capacidades requer tempo, mesmo um tempo bastante longo, para eclodir e para se achar em condições de agir.
O mínimo que se pode dizer é que a ciência actual, no seu estado mais evoluído, não dá apoio algum substancial aos defensores do aborto. De resto, não pertence às ciências biológicas dar um juízo decisivo sobre questões propriamente filosóficas e morais, como são a do momento em que se constitui a pessoa humana e a da legitimidade do aborto. Ora, sob o ponto de vista moral, isto é certo mesmo que porventura subsistisse uma dúvida concernente ao facto de o fruto da concepção ser já uma pessoa humana: é objectivamente um pecado grave ousar correr o risco de um homicídio. « É já um homem aquele que o virá a ser »
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