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    domingo, 8 de abril de 2012

    O Sermão da Montanha e as Bem Aventuranças Evangélicas

    Montfort


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    sábado, fevereiro 27th, 1999 at 12:00pm
    • O Sermão da Montanha e as Bem Aventuranças Evangélicas
    Publicado em ORAÇÃO E VIDA ESPIRITUAL

    Nosso Senhor Jesus Cristo fez o seu primeiro grande sermão, no alto de um monte, e o iniciou enumerando as oito bem aventuranças.

    Hoje, existe um tão grande desconhecimento da doutrina católica, e uma tal deturpação dela, que consideramos útil resumir, para os leitores de nosso site, o que comentaram os grandes santos sobre esse Sermão e sobre as oito bem aventuranças.



    É claro que, ao fazermos este resumo e esta exposição, nos submetemos inteiramente ao que ensina a Santa Igreja Católica, estando prontos a retirar e a condenar qualquer coisa que ela condene ou que ordenasse que fosse retirado.



    É no Evangelho de São Mateus que aparece a mais longa narração desse famoso sermão de Jesus, anunciando a Nova Lei:



    • “Vendo Jesus aquela multidão, subiu a um monte, e, tendo-se sentado, aproximaram-se dEle os seus discípulos. Ele, abrindo a sua boca, os ensinava, dizendo:




    • “Bem aventurados os pobres de espírito,” etc.



    Inicialmente, convém examinar a introdução desse capítulo de São Mateus.



    Nela se diz que “Vendo Jesus aquela multidão, subiu a um monte”.



    Porque Cristo, ao iniciar a pregação do Evangelho, ao ensinar a Nova Lei do Novo Testamento, ao ver a multidão, subiu a um monte?



    Os grandes Doutores que comentaram esse Sermão, notam que Jesus, sempre que era cercado pela multidão, se apartava dela, retirando-se ou para um monte — como neste caso — ou para uma barca, a barca de Pedro, como se conta em Luc. V, 2, ou para o deserto (Luc. IV, 41).



    Por que se afastava Cristo da multidão?



    Conforme São João Crisóstomo, “parece que Cristo quis evitar o ver-se envolvido pelas turbas, e por isso subiu a um monte, para falar especialmente a seus discípulos”.



    E ainda nos ensina São João Crisóstomo: “Nisto de pregar sobre um monte e na solidão, e não na cidade, nem no fórum, ensinou-nos Jesus a nada fazer por ostentação, e separar-nos dos tumultos, principalmente quando convém discorrer sobre coisas necessárias”. (Apud Santo Tomás de Aquino, Catena Áurea, Comentário ao Evangelho de São Mateus, V, 1-3. Cursos de Cultura Católica, Buenos Aires, vol. I, p. 112).



    Vê-se bem, por esse comentário do grande São João Crisóstomo, como difere a mentalidade cristã da mentalidade que domina em nosso tempo.



    Hoje, infelizmente, os pregadores buscam a multidão, correm atrás dela, preferem o tumulto das turbas ao silêncio da oração e ao isolamento da humildade. Buscam ter prestígio, e, para isso, querem agradar a multidão, seguí-la, imergir nela, ora usando meios e métodos demagógicos, ora capitulando diante de seus caprichos, ou calando e omitindo-se diante de suas paixões desregradas.



    O resultado é que ninguém, de fato, segue esses maus pregadores, que antes deveriam ser chamados de pegadores, caçadores de prestígio. Mas pegadores fracassados, porque nada e ninguém pegam. A multidão os ouve, e mal, enquanto eles admitem os seus caprichos e favorecem as suas paixões, mas logo os abandonam, porque é próprio do capricho ser mutável, e, da paixão, é próprio o logo cansar-se. E ninguém segue aquele que segue a multidão.



    Prestígio e fama são como a sombra: nunca se os alcança, quando se corre atrás deles.



    Cristo não procurava o seu prestígio, fazendo concessões às turbas. Essas concessões são próprias dos demagogos, e não da Santidade. Por isso, quando os fariseus se escandalizaram com as palavras de Cristo de que, quem não comesse a sua carne, e não bebesse o seu sangue, não teria vida eterna, e os fariseus se afastaram, Cristo não foi atrás deles, procurando retê-los com palavras que abrandassem o que Ele dissera. Pelo contrário, perguntou aos Apóstolos: “Não quereis vós também retirar-vos?” (Jo. VI, 68).



    Cristo, então, para ficar afastado da multidão “subiu a um monte”, para melhor ensinar.



    Fez, porém, com que os seus discípulos, se aproximassem mais, ficando as turbas um pouco além. Deste modo, ensinou que se deve proceder com hierarquia, — não com igualdade — pois os homens não são iguais. Os Apóstolos e os discípulos, que iam ter maior dever e maior responsabilidade, deveriam estar mais próximos do Divino Mestre, para aprenderem melhor, e, depois, ensinarem as turbas.



    “Subiu ao monte” para ensinar.



    Por que subir a um monte? Claro que era para ser visto mais facilmente pelas turbas. Mas, ao lado deste fim prático, havia outros motivos superiores para ensinar desde o alto do monte.



    Os grandes fatos do Antigo Testamento deram-se no alto de montes.



    A arca de Noé se deteve no alto do monte Ararat (Gen. VIII ,4).



    Abraão subiu a um dos três montes de Moriá, para sacrificar seu filho Isaac, símbolo de Deus Pai que sacrificou seu Filho Unigênito no alto do monte Calvário (Gen, XXII, 2).



    E o Profeta Elias viu a promessa de Deus de que faria chover o justo sobre a terra no alto do monte Carmelo, e, mais tarde viu o próprio Deus no monte Horeb.



    Também no Antigo Testamento Deus ordenou a Moisés que subisse ao monte Sinai, onde lhe daria a Lei, em duas tábuas de pedra.




    • “Moisés subiu ao monte, para ir falar com Deus, e o Senhor o chamou do monte” (Ex. XIX, 3).



    E Moisés santificou o povo, e Deus lhe ordenou:




    • “Vai ter com o povo, santifica-o, hoje e amanhã, lavem os seus vestidos, e estejam preparados para o terceiro dia; porque no terceiro dia, o Senhor descerá à vista de todo o povo sobre o Monte Sinai. Fixarás à roda limites ao povo e lhes dirás: Guardai-vos de subir ao monte, nem toqueis em seus limites, todo o que tocar o monte será punido de morte. Mão alguma o tocará, mas quem o tocar será apedrejado, ou trespassado com setas; quer seja um animal ou um homem, não viverá; quando começar a soar a trombeta então subam ao monte” (Ex. XIX, 10-14).



    O povo devia ser mantido afastado do Sinai, onde só Moisés poderia subir. Do mesmo modo, o povo não pode subir ao altar. Só o sacerdote pode fazê-lo. Não há igualdade entre o sacerdote e o povo. Além disso, convém muito notar, o Sinai, isto é, a revelação e a lei são intocáveis. Deus decretou a pena de morte contra quem toca na revelação e na lei, na Fé e na Moral.



    Como isso contraria o “achismo” atual, em que cada um se arroga o “direito” de pensar o que quiser sobre a Fé e sobre o lícito e o ilícito. Ninguém pode mudar a Fé a Moral, porque as palavras de Deus permanecem eternamente.



    Assim como Moisés subiu ao Sinai para dar ao povo a lei antiga, agora, é Cristo que faz o seu grande Sermão na Montanha das Bem Aventuranças, dando a nova lei do Novo Testamento.



    Se no Sinai Deus se manifestou com raios e trovões, no Monte Cristo deu a sua lei com suavidade e amor, pois “Ele era cheio de graça e de verdade” (Jo. I, 14).



    Por que essa preferência de Deus de querer manifestar-se, normalmente, sobre uma montanha?



    A montanha é feita de terra. E terra é o homem. Um monte é uma elevação de terra que se aproxima do céu. A montanha é o que, na terra, mais se aproxima do céu. A Montanha simboliza, pois, algo humano que se acerca do divino.



    A Montanha simboliza os grandes santos, e simboliza também a Igreja, sociedade divina e humana, pois que nela, se associam Cristo Deus, como sua cabeça, e os homens, como membros do Corpo Místico de Cristo.



    A Igreja é o monte santo de Deus.



    É o que explica o mesmo São João Crisóstomo ao dizer:



    • “Ou de outro modo, [Cristo] “subiu ao monte” para manifestar que todo aquele que queira conhecer a verdade, deve subir ao monte da Igreja, da qual disse o Profeta: “O Monte do Senhor é um monte rico”.(Apud Santo Tomás de Aquino, Catena Áurea, Comentário ao Evangelho de São Mateus, V, 1-3. Cursos de Cultura Católica, Buenos Aires, vol. I, p. 112).




    • “O Monte de Deus é um monte fértil, monte coagulado, monte fecundo. Mas porque pensais em outros montes férteis? Há um monte em que aprouve a Deus morar, porque o Senhor habitará nele perpetuamente” (Ps. LXVII, 16-17).



    Esse monte é a Igreja, que foi simbolizada, no Antigo Testamento pelo Sinai, e, depois, pelo monte Sion, em Jerusalém.



    E Cristo morreu sobre o monte Calvário, e não sobre Sion, porque o Calvário estava fora da cidade, a fim de significar que a Igreja seria fundada fora de Israel.



    Porque o monte representa a Igreja é que Cristo, falando da Igreja, disse:



    • “Não se pode esconder uma cidade situada sobre um monte” (Mt V, 14).



    É desse monte em que foi posta a Igreja, que profetizaram os profetas, dizendo:



    • “E acontecerá que, nos últimos tempos, o monte da casa do Senhor será fundado sobre o alto dos outros montes, e se elevará sobre os outeiros, e os povos concorrerão a ele. As nações hão de correr para lá em multidão dizendo: Vinde, subamos ao monte do Senhor, à casa do Deus de Jacó, e Ele nos ensinará os seus caminhos” (Is. II, 2-3 e Miq. IV, 1-2).




    • “E o monte do Senhor dos exércitos será um monte santo” (Zac. VIII, 3).



    Por todas essas razões, Cristo subiu a um monte para fazer o seu primeiro e maior sermão, dando a nova Lei aos homens, uma lei que era carga leve e um jugo suave.



    Entretanto, se no Sinai — símbolo da Igreja — Deus ordenou que o povo se mantivesse afastado, no Monte das bem Aventuranças, Cristo, embora deixasse o povo mais abaixo que seus Apóstolos e discípulos, pois não deve haver igualdade entre eles, não lhe colocou barreiras que distanciassem demais o povo do Messias, porque Cristo era o Messias, o Emanuel, que quer dizer Deus conosco. E Cristo quer unir-se pessoalmente a cada homem.



    Como dissemos, no Sinai, Deus deixou claro que quem tocasse no monte seria morto, para significar que ninguém pode tocar na lei de Deus. Ninguém pode tocar na revelação.



    Por isso, no Sermão da Montanha, Cristo irá repetir várias vezes, que Ele não veio mudar, não veio tocar na lei, mas aperfeiçoá-la, e que nem um jota será tirado da lei. Que passarão os céus e a terra, mas que as suas palavras não passarão.



    Como estão pois errados os que pretendem acomodar a Fé aos nossos tempos, ou adaptar a moral aos novos costumes!



    Não é a Igreja que se deve adaptar ao mundo, mas, ao contrário, é o mundo que deve ser convertido e transformado pela Igreja. Por isso os não católicos têm que se converter à Igreja, e não o contrário.



    Hoje, os maus pastores fazem o oposto: “convertem”-se aos costumes e às péssimas modas do dia, adotando os modos, as atitudes e até as roupas do mundo e as palavras dos mundanos. Entram na “onda” do dia. E a “onda” os arrasta para o abismo.



    Diz o Evangelho de São Mateus que Cristo “depois de ter se sentado” sobre o monte, “abriu a boca” para começar a ensinar.



    Por que sentou-se Cristo, para ensinar?



    Sempre a autoridade foi representada por um trono, por uma cadeira. Os reis têm um trono. Os juizes se assentam numa cadeira mais alta, nos tribunais, e os mestres têm uma cátedra, para ensinar. E outrora, os padres pregavam o sermão do alto do púlpito.



    Hoje, o púlpito do sermão, símbolo da montanha do Sermão de Cristo, foi retirado das igrejas…



    O padre, hoje, fala ao nível do chão. Palavras terrenas. Muitos o fazem porque reconhecem que não tinham altura para falar, lá, do alto do púlpito, palavras do céu…



    A cadeira ou cátedra magisterial significa a imobilidade da autoridade. Porque, como disse Aristóteles, “convém que o escravo corra, e que o senhor fique sentado”.



    Quanto mais uma autoridade se move, mais ela perde força e autoridade.



    Deus altíssimo é ato puro, imutável. Daí estar escrito: “Deus não é como o homem, capaz de mentir, nem como o filho do homem, sujeito a mudanças” (Num. XXIII, 19). Deus não muda.



    Por isto, Cristo sentou-se, para ensinar com autoridade.



    Está escrito que “seus discípulos chegaram mais perto dele”, porque, sendo mais próximos do Senhor, tinham mais direito de aprender do Mestre, visto que eles é que receberiam a missão de evangelizar a terra e as nações.



    E logo depois, o Evangelho anuncia que Cristo:



    • “Abrindo a boca, os ensinava”.



    São Gregório explica que se diz isso, porque “Como Jesus tinha que expressar preceitos sublimes no monte, se diz à guisa de prefácio: “E abrindo a boca, etc. Aquele que havia aberto a boca dos profetas [agora, Ele mesmo iria falar, ensinando a humanidade]. (Apud Santo Tomás de Aquino, Catena Áurea, Comentário ao Evangelho de São Mateus, V, 1-3. Cursos de Cultura Católica, Buenos Aires, vol. I, p. 113).



    Era o Verbo de Deus feito homem que ia falar. A mesma palavra de Deus, por meio da qual foram criadas todas as coisas, é que ia falar. Quando, no Princípio, Ele pronunciava uma palavra, a coisa enunciada era criada. Era o Filho de Deus feito homem quem ia abrir a sua boca, para ensinar.



    Pois foi escrito:



    • “Minha boca publicará a verdade, e os meus lábios detestarão o ímpio” — “Veritatem meditabitur guttur meum, et labai mea detestabuntur impium” (Prov. VIII, 7).



    Porque é impossível amar a verdade sem detestar a falsidade. Para conhecermos o grau de amor que temos para com a verdade, devemos medir o grau de ódio que temos da mentira. A boca que diz amar a verdade, sem detestar a mentira, mente. O amor do bem produz o ódio ao mal. O amor à virtude produz o ódio do vício. E quem não detesta o vício, não ama a virtude.



    Por isso diz bem um ditado espanhol: “Quem ama, detesta, e quem detesta, combate”.



    São Tomás de Aquino explica esse versículo supra citado do Livro dos Provérbios, no início da Suma contra Gentiles.



    Diz lá o Aquinate:



    • “O último fim do universo é o bem do entendimento, que é a verdade.”




    • “Por isso a Sabedoria divina Encarnada declara que veio a este mundo para manifestar a verdade: “Eu para isto nasci e vim ao mundo, para dar testemunho da verdade” (Jo. XVIII, 37).




    • E o Filósofo determina que a primeira Filosofia é a “Ciência da verdade”, e não de qualquer verdade, senão daquela que é origem de toda outra verdade daquela a que pertence ao primeiro princípio de todas as coisas. Por isso, sua verdade é princípio de toda a verdade, porque a disposição das coisas com relação à verdade é a mesma do que com respeito ao ser.




    • A ela pertence aceitar um dos contrários e repudiar o outro: como acontece com a medicina, que cura e repudia a doença. Logo, assim como é próprio do sábio o contemplar principalmente a verdade do primeiro princípio e julgar das outras verdades, assim também é próprio dele lutar contra o erro.




    • Por boca da sabedoria, portanto, se assinala convenientemente, nas palavras propostas [em Prov. VIII, 7], o duplo dever do sábio: expor a verdade divina, meditada, verdade por antonomásia, que atinge quando diz: “Minha boca proclamará a verdade” e atacar o erro contrário, ao dizer: “Meus lábios detestarão o ímpio” (Prov. VIII, 7).




    • Nestas últimas palavras quer mostrar o erro contra a verdade divina, que é contra a religião, chamada também “piedade”, de onde a seu oposto cabe o nome de “Impiedade” (São Tomás, Suma Contra os Gentios, I).



    Por essa razão também está escrito que “Deus odeia igualmente o ímpio e a impiedade” (Sab. XIV, 9).



    Cristo, então, subindo ao monte para ensinar, abriu a sua boca louvando o bem e condenado o mal, ensinado a verdade e condenando o erro.



    Pois fora dito “A Sabedoria Abrirei a minha boca em parábolas” (Ps. LXXVII, 2). E em São Mateus se Lê: “Abrirei em parábolas a minha boca, publicarei os enigmas dos antigos tempos” (Mt. XIII, 35).



    E Santo Agostinho diz que “Onde se lê que Jesus abriu a boca, entenda-se que Ele vai dizer grandes coisas” (Apud São Tomás, Catena Aurea, Comentário a São Mateus, V, ed. cit. , p. 113).



    E seguiu Jesus enunciando as oito bem aventuranças.



    À primeira leitura, é difícil perceber a ordem dessas oito bem aventuranças. Entretanto, elas têm uma ordem profunda. Se não percebemos logo essa ordem profunda, é por nossa incapacidade, pois a Sabedoria encarnada nada fez ou disse desordenadamente.



    Eis as oito bem aventuranças proclamadas por Jesus Cristo, no início do Sermão da Montanha:







    • 1a) “Bem aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus.



    • 2a)“Bem aventurados os mansos, porque possuirão a terra.



    • 3a) “Bemaventurados os que choram, porque serão consolados.



    • 4a) “Bem aventurados os que tem fome e sede de justiça, porque serão saciados.



    • 5a ) “Bem aventurados os que misericordiosos, porque alcançarão misericórdia.



    • 6a ) “Bem aventurados os puros de coração, porque verão a Deus.



    • 7a ) “Bem aventurados os pacíficos, porque serão chamados filhos de Deus.



    • 8a )Bem aventurados os que sofrem perseguição por amor à justiça, porque deles é o reino dos céus.” (Mt. V, 1-10).







    Qual o critério dessa enumeração?



    O homem busca sempre a felicidade. Entretanto, muito freqüentemente os homens se enganam no que consiste realmente a felicidade.



    Duas forças impelem nossa alma e de modo desregrado:



    A primeira é concupiscível, que nos impulsiona ao bem, sob qualquer forma que ele se apresente. E a primeira forma e mais grosseira de bem que se nos oferece é o bem do apetite sensível, o bem do prazer, quer o prazer carnal, quer o do paladar, quer o da posse dos bens exteriores a nós, isto é as riquezas. Estes bens — do prazer e da riqueza– são bens materiais, criados por Deus, que só são males se os colocarmos acima dos bens espirituais. É na desordenação dos bens que consiste o pecado, isto é, na colocação de um bem material acima do bem da alma. Pecado é cometer essa desordenação dos bens.



    O concupiscível se tornou desordenado após o pecado original: ou queremos o bem inferior demais, ou somos frios diante dele.



    Por outro lado, quando algo se opõe a que conquistemos um bem, qualquer que ele seja, irritamo-nos, e nos lançamos com força contra aquilo que se nos opõe à posse desse bem. Essa força que nos leva a lutar contra os obstáculos é o irascível.



    Também o irascível ficou deteriorado com a queda original. Ou nos irritamos demais contra os obstáculos que se levantam em oposição à realização de nossa vontade, ou pecamos por falta de coragem, reagindo fracamente contra os obstáculos. Daí São Paulo dizer: “Irritai-vos mas não pequeis”



    Como disse Platão, no Diálogo República, nossa alma pode ser comparada com uma biga, puxada por dois cavalos selvagens.



    O concupiscível e o irascível são esses dois cavalos bravios que arrastam o carro de nossa alma. Ambos devem ser controlados pela prudência, que é uma virtude intelectual. A razão seria o cocheiro de nossa alma, que retém o ardor desenfreado dos cavalos selvagens, por meio das rédeas, e os excita, quando preciso, quando não querem agir, com o chicote.



    A virtude que controla o concupiscível é a virtude da temperança ou do equilíbrio no amor do bem. A virtude que controla o cavalo do irascível é a fortaleza. A virtude intelectual da prudência é o cocheiro — a razão — que controla sabiamente o concupiscível e o irascível.



    E Platão conclui que a justiça é a virtude que harmoniza e une essas três virtudes tornando o homem justo.



    As três primeiras virtudes se fundem numa só: a justiça. Pois três são um e um é três. (Platão, República).



    Disso tudo se compreende que o primeiro erro quanto à felicidade consiste em colocá-la nos prazeres e na imposição da própria vontade aos outros.



    Daí as três primeiras bem aventuranças afirmarem que, na verdade, as três primeiras bem aventuranças são: a pobreza espiritual, a mansidão e chorar os pecados próprios e os dos outros.



    Um segundo erro quanto à essência da felicidade consiste em colocá-la na realização de grandes ações. Contra esse erro Nosso Senhor ensina que a bem aventurança consiste em fazer justiça e exercer a misericórdia (4a e 5a bem aventurança).



    Finalmente, o último erro com relação à felicidade consiste em querer obtê-la através de uma vida contemplativa falsa ou de um falso conhecimento.



    Contra essa falsa contemplação e falso conhecimento opõe Cristo a sexta e sétima bem aventuranças: a visão de Deus e o promover a verdadeira paz.



    Finalmente, a oitava bem aventurança é apenas uma síntese de todas as sete anteriores.



    Portanto, as bem aventuranças estão colocadas em perfeita e profunda ordem.





    • Análise das Bem Aventuranças





    1a) “Bem aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino do Céu” (Mt. V,3)



    Quanta loucura não se tem dito sobre esta bem aventurança!



    Há quem julgue que Nosso Senhor apresentou como bem aventurados os que têm pouca inteligência, por entenderem que “pobres de espírito” seriam os tolos, os apoucados intelectualmente, e que, portanto, ser inteligente seria um sinal de perdição.



    Conforme ensina São Tomás, o primeiro obstáculo para a nossa salvação reside na felicidade que se pensa atingir com os prazeres.



    E a vida voluptuosa se pode atingir através dos bens exteriores, seja a riqueza material, seja as honras. O homem tem que ter domínio sobre essa tendência, usando moderadamente quer das riquezas, quer das honras, por meio da virtude da temperança.



    Daí, Cristo proclamar bem aventurados os que não colocam a felicidade nas riquezas e nas honras, mas nos bens eternos e na glória celestial. (Cfr. São Tomás, Suam Teológica, I – 2ae , Q. 69, a.3).



    Para entender essa bem aventurança mais perfeitamente, é preciso compreender que se pode ser pobre ou rico de duas maneiras:



    Existe o homem materialmente pobre e aquele que é pobre espiritualmente, embora tenha riquezas. Pobre espiritual é aquele que tendo ou não riquezas, as despreza e não coloca nela a felicidade.



    Rico material é aquele que têm muitos bens materiais, enquanto rico espiritualmente é o homem que sendo rico, ou mesmo pobre, julga que o bem da existência está na riqueza.



    São Luís, Rei de França era muito rico, mas desprezava as riquezas, por isso São Luís era bem aventurado, pois não colocava nos bens terrenos a felicidade.



    Em contrapartida, um favelado — materialmente pobre — poderá ser um rico em espírito se ele colocar a sua felicidade na ambição das riquezas, embora não as possua, ela só vive pensando nelas e só vive para elas.



    Nosso Senhor proclama bem aventurados os “pobres de espírito”, isto é, aqueles que não vivem para o dinheiro, tenham-no ou não.



    Quantos ricos há que só vivem para o dinheiro! Mas hoje, infelizmente, os socialistas “cristãos” fizeram dos pobres, graças à sua propaganda atéia e subversiva, ricos espiritualmente, isto é, ambiciosos, cobiçosos, e cúpidos de ouro.



    Bem aventurados os pobres de espírito, bem aventurados os que compreendem que o homem não deve viver para ser rico, para ter posses, para ter vida cômoda, mas para ser santo.



    Desventurados os que colocam sua felicidade nas riquezas, e ainda mais amaldiçoados sejam os que fazem os que são materialmente pobres se revoltarem contra a pobreza, e enchem os seus corações de ambição e de inveja.



    Por pobres de espírito pode-se entender ainda — é o que ensina Santo Agostinho — os que são humildes, e ricos de espírito, os orgulhosos.



    Como os bens terrenos desejados por nossa concupiscência desregrada nos cativam com grande força, o dom do Espírito Santo que nos ajuda a vencer essa atração é o do temor de Deus. É pelo dom do Temor de Deus que aprendemos a usar com temperança dos bens e das honras, já que no mais simples grau de virtude, somos movidos pelo temor, mais do que pelo amor. Por isso está escrito que “o temor de Deus é o início da Sabedoria”.





    2a) “Bem aventurados os mansos, porque eles possuirão a terra”



    Esta é a segunda bem aventurança anunciada por Cristo.



    Se na primeira bem aventurança se louvou os que dominam o concupiscível, na segunda se anuncia a bem aventurança dos que vencem o irascível.



    É o que expõe São Tomás, na questão acima citada. Pois a virtude exige que o homem controle o seu irascível de acordo com a razão, sem se exceder na ira, e sem faltar com a ira quando a injustiça exige reação.



    Mansos não são aqueles que não reagem, que não tem fibra, e que tudo agüentam passivamente. Mansos são aqueles que controlam a ira, cumprindo o que disse São Paulo: “Irritai-vos, mas não pequeis”.



    A mansidão não é uma passividade budista. A mansidão é uma virtude, e como tal, exige um esforço da vontade correspondendo à graça de Deus. Pela virtude da mansidão o homem domina o seu irascível que tenta levá-lo a impor sempre a sua própria vontade, ainda que de modo irracional. O iracundo quer impor-se e dominar a todos, e, exatamente por isso, acaba por não se impondo, mas produzindo revolta contra a sua tirania, pois “espada aguçada demais, perde o fio facilmente”, diz um ditado chinês.



    O homem que possui a virtude da mansidão tem controle completo de suas reações, ele é senhor de si mesmo. Ora, como a palavra terra designa o homem, que foi feito de terra, o que Cristo promete nesta segunda bem aventurança, é que os mansos serão senhores de si próprios. Possuirão a “terra”, isto é, dominarão a sua própria natureza, a sua alma e o seu corpo. Deste modo, são os mansos aqueles que cumprem com o mandato divino a Adão: “Dominai a terra” (Gen. I, 28).



    Os iracundos — que tem o vício oposto à virtude da mansidão — quereriam impor-se a todos e ao mundo todo. Quereriam dominar o mundo. Porém, como não dominam sequer a sua própria ira, como não dominam a sua própria natureza, mas a paixão da ira os escraviza, eles nada serão capazes de dominar. Pelo contrário, são os mansos que não querem se impor a ninguém por seu capricho, e não querem nada disputar com ninguém, por interesse próprio, são eles que terão a maior autoridade e que dominarão a terra e os homens.



    E o dom do Espírito Santo que os ajuda a vencer-se e a dominar a terra é o dom da Piedade, que faz interessar-se pelo respeito dos direitos dos outros, especialmente quando os outros não tem como defender aquilo a que tem direito.





    3a) “Bem aventurados os que choram, porque serão consolados”.



    As duas primeiras bem aventuranças são para aqueles que dominam o concupiscível e o irascível. Mas, pode-se ir além do equilíbrio no exercício da temperança (que controla o concupiscível) e da fortaleza, (controladora do irascível).



    Vai-se além quando ademais do exercício das virtudes se lamentam os pecados cometidos contra elas, e se busca, pela penitência, o oposto do que procuram o concupiscível e o irascível, chorando os pecados passados.



    Quem são os que choram?



    São aqueles que, tendo pecado com relação aos bens terrenos, vivendo para eles, ou aqueles que buscaram a felicidade nos prazeres da carne, ou que, tendo desejado impor a sua vontade, violando a virtude da mansidão, se arrependem e choram os seus pecados, porque compreendem que neles não está a verdadeira felicidade. Choram o mal feito, e chora porque fazem penitência que sempre é dolorosa e amarga e causa pranto.



    São João Crisóstomo ensina que os bem aventurados que choram neste mundo fazem-no por duas razões: primeira, pelas misérias desta vida; e, segunda razão, pelo desejo das coisas celestiais.



    Lembra ainda este grande Doutor do Oriente que, se aqueles que perdem os filhos ou entes muito amados, “por muito tempo não desejam riquezas nem glória, nem se exasperam pelas ofensas, nem são dominados por nenhuma paixão, muito mais devem observar estas coisas os que choram os seus pecados” (São Tomás, Catena Aurea, p. 116).



    Bem aventurados, pois, os que choram os seus pecados por um arrependimento verdadeiro.



    Mas, Santo Jerônimo diz mais: “Os que choram em realidade os seus próprios pecados podem chamar-se bem aventurados, porém pela metade. Mais bem aventurados ainda são aqueles que choram os pecados alheios”.(Apud São Tomás, Catena Aurea, vol. I, p. 115).



    Por que é assim?



    Porque, quando alguém chora os seus próprios pecados, faz muito bem, mas pode ter interesse mais por si, do que pela glória de Deus. Enquanto quando alguém chora sincera e desinteressadamente pelos pecados alheios, chora pelo mal que o outro fez a sua alma, e principalmente, pela glória de Deus que é diminuída.



    O chorar pelos pecados alheios é fruto do zelo pelas almas e pela glória de Deus ofendida.



    É o que fez Santo Elias, no Horeb, pois quando Deus lhe perguntou: “Que fazes aqui, Elias? Ele respondeu: “Eu me consumo de zelo pela causa do Deus dos Exércitos, porque os filhos de Israel abandonaram a tua Aliança, destruíram os teus altares, mataram os teus profetas à espada. E eu fiquei só e procuram-me para me tirarem a vida” (I Reis, XIX, 9-11).



    A verdadeira santidade se manifesta nesse zelo pelas almas e pela justiça na terra, a fim de que Deus seja glorificado.



    E os que choram os pecados alheios também eles serão consolados, visto que, na outra vida, conhecerão a grande bondade de Deus, e como os maus agiram injustamente, não se comovendo nem com suas lágrimas, nem, muito menos atendendo aos apelos da Providência. Então, eles se alegraram pela punição daqueles por quem choraram sem que eles aproveitassem, pois está escrito: “O justo se alegrará na vingança [de Deus]. (Sl. LVII, 11).







    4a) “Bem aventurados os que em fome e sede de justiça, porque eles serão fartos”.



    Depois de tratar daqueles que não colocam a felicidade nos prazeres e na imposição de sua vontade, vem as bem aventuranças da vida ativa. E como expõe São Tomás a vida ativa sem justiça faz não dar a cada um o que é seu, e a tratar os fracos sem nenhuma misericórdia.



    Nosso Senhor afirma então que a verdadeira felicidade provém e é dada para aqueles que dão a cada um o que lhe é devido, e a quem trata os fracos não só com justiça, mas com misericórdia, dando-lhes mais do que aquilo que é justo.



    Justiça é dar a cada um o que lhe é devido. Não a tirar de cada um o que lhe pertence. Nem ambicionar arrebatar dos outros os bens que possuem. Ainda que a Pastoral da Terra chame isso de justiça… social.



    A justiça manda pagar a cada um o que lhe devemos, mas a misericórdia vai mais além, fazendo dar generosamente mesmo aquilo que não é imposto pela estrita justiça.



    Por justiça se entende também a perfeição da virtude. Por isso, ter fome e sede de justiça significa ter apetência de virtude.



    Quanto mais um homem apetece a virtude mais Deus lhe dará graças. Mas para aqueles que não manifestam desejo de virtude, menos se lhes dará, e até o pouco que têm lhes será tirado.



    Conforme diz São João Crisóstomo, tem fome de justiça aquele que quer agir de acordo com a Justiça de Deus. E tem sede de justiça aquele que deseja adquirir a sua ciência.



    Estes serão saciados porque desejam a justiça e ciência, pois Cristo disse que não só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus. Como também nosso Divino Mestre e Modelo nos afirmou que “Minha comida é fazer a vontade daquele que me enviou” (Jo. IV, 34), a qual é a justiça.



    Os mundanos pensam que é a industria e o desenvolvimento que produzirão a abundância, mas Deus nos ensinou o oposto: “Buscai, pois, em primeiro lugar, o Reino de Deus e sua justiça e tudo o mais vos será dado por acréscimo” (Mt. VI, 33).



    Exatamente o contrário do que ensinam os “teólogos” da Libertação. Para estes novos hereges marxistóides, é a ambição e a rapina guerrilheira que trarão a justiça e a abundância. Na verdade, como a ambição e rapina são contrárias à justiça, elas só trazem a miséria, a injustiça e o crime.



    O dom do Espírito Santo correspondente a esta bem aventurança, segundo São Tomás, é o dom da Fortaleza, que nos permite suportar com paciência e força todos os sofrimentos advindos de nossa fome e sede de justiça.







    5a) “Bem aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia”



    Depois das bem aventuranças relacionadas com os bens exteriores a nós e com nossos prazeres materiais, Cristo cita as bem aventuranças relacionadas com a vida ativa, que é constituída por obras de virtude, que ordenam o homem ao próximo.



    Misericórdia é a virtude que nos faz ter o coração cheio de pena pelas misérias alheias. O misericordioso vê a desgraça ou desventura do outro como própria. O mal dos outros lhe dói como se fosse seu.



    Como há duas desgraças que podem afligir os homens, a desgraça material e o pecado que é a maior desgraça possível neste mundo, há também duas misericórdias; a misericórdia material , que procura atender os males materiais do próximo; e a misericórdia espiritual que se dói e aflige com os pecados alheios e quer corrigi-los através os conselhos, da instrução, da correção e mesmo do castigo. Daí o Catecismo apontar como obra de misericórdia espiritual “instruir os ignorantes e castigar os que erram”.



    É evidente que as obras de misericórdia espiritual são superiores às obras de misericórdia material.



    Hoje, porém, só se fala das obras de misericórdia materiais, e se quer fazê-las apenas por amor do homem em si mesmo, e não por amor de Deus. Ora, São João Crisóstomo nos ensina que “toda obra boa que não é feita por amor do mesmo Bem (Deus), é desagradável diante de Deus” (Santo Ambrósio, apud São Tomás, Catena Aurea, p.116-117).



    Fazer o bem por amor do homem é filantropia e não caridade; é obra humana e não divina.



    A misericórdia e a justiça são virtudes inseparáveis: uma não pode existir sem a outra. Elas são como os dois arcos de uma ogiva gótica: se for tirado um arco, o outro cai, e vice-versa.



    Por isso diz a glosa: “A justiça e a misericórdia estão tão unidas que uma sustenta a outra. Justiça sem misericórdia é crueldade. Misericórdia sem justiça é dissipação (ou moleza)” (São Tomás, Catena Aurea, p. 117).



    Daí estar escrito: “A misericórdia e a verdade se encontraram, a justiça e a paz se beijaram na face. (Ps. LXXXIV, 11). E verdade aí significa exatamente justiça, pois explica São Tomás que, em Deus a justiça é a verdade.



    “(…) a justiça de Deus que estabelece nas coisas uma ordem em conformidade com a razão ou idéia de sua Sabedoria, que é a sua lei, com razão se chama “verdade”, e por isso, inclusive entre nós, falamos da “verdade da justiça” (Cfr. São Tomás, Suma Teológica, I, Q. 21, a . 2).



    E é por isso que, também, está escrito “Todos os caminhos do Senhor são misericórdia e verdade” (Ps. XXIV, 10).



    Como a misericórdia para com o próximo se refere sempre a uma situação concreta em que ele está, o dom do Espírito Santo que nos leva a alcançar essa bem aventurança é o dom do Conselho. Este dom do Espírito Santo consiste em ver claramente, pela Sabedoria e pela Inteligência dos princípios como aplicá-los em um caso particular.



    Aos misericordiosos se lhes promete a Misericórdia de Deus para com eles, porque, se eles tem pena dos males espirituais que afligem o próximo, desejando ajudá-lo para que deixem o estado de pecado, Deus terá deles ainda maior misericórdia, pois que Ele não pode ser vencido em generosidade. Isto é tão importante que Nosso Senhor Jesus Cristo incluiu, no Pai Nosso, — que contém tudo o que devemos pedir a Deus — a petição de que Deus tenha misericórdia de nós, assim como nós temos misericórdia dos outros: “perdoai as nossas dividas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores”.





    6a) “Bem aventurados os puros de coração, porque eles verão a Deus”



    As duas últimas bem aventuranças correspondem à felicidade da vida contemplativa, que é superior à da vida ativa.



    Esta felicidade será perfeita e em máximo grau no céu, mas, já na terra, aqueles que praticaram a virtude podem gozar, ainda aqui, uma certa felicidade sapiencial da vida contemplativa.



    E esta Bem Aventurança foi colocada no sexto lugar, porque foi no sexto dia que Deus criou o homem e o fez à sua imagem e semelhança. (Cfr. Santo Ambrósio, apud São Tomás, Catena Aurea, p.118).



    Dominadas as paixões do concupiscível e do irascível, vencidas as tentações relativas à vida ativa com relação ao próximo, o homem goza, ainda nesta vida de um domínio de sua alma que o faz senhor de si e das coisas que ele vê de modo claro, sem a distorção das paixões e com valor que as coisas têm realmente.



    Nem a paixão faz ver as coisas distorcidas, nem os afetos desregrados as valorizam injustamente.



    O Homem tudo contempla, como disse Dante, “con occhio chiaro e com afetto puro”.



    Ver tudo com olhar claro, sem a deturpação da volúpia, sem a distorção da avareza, sem o apego da dominação, ver todos os seres — homens e demais criaturas — tais quais foram feitos por Deus na manhã original.



    Ver com “occhio chiaro“, isto é com inteligência certa, precisa e clara.



    E, quando se vêem as coisas e as pessoas assim, se vêem nelas a imagem e os vestígios de Deus.



    Deus fez o universo por meio de sua Palavra, de seu Verbo. A cada palavra que Deus dizia uma coisa era feita. Deste modo cada criatura é uma palavra de Deus cristalizada num ser.



    Sendo o universo um conjunto de palavras de Deus, o universo é um poema. Essa idéia esplêndida é de São Boaventura.



    E sendo o universo um poema, ele pode ser “lido”, pois todas as coisas falam de Deus. Mas só é capaz de ler o universo — ler os seus símbolos, já que o símbolo é um inteligível no sensível, conforma a magistral definição de um autor suspeito, o Pseudo-Dionísio — só é capaz de ler o poema do universo quem tem o coração reto, quem tem o olhar claro e o afeto puro.



    São Francisco, em seu esplêndido poema intitulado “Cantico delle Creature”, o que ele fez foi uma leitura do poema do universo cantando o irmão Sol (Fratre nostro Sole), a irmã Lua (Sor nostra Luna , o irmão fogo e a irmã água . E a irmã Morte, da qual “nullo vivente può scappare” (Nossa irmã Morte da qual nenhum ser vivo pode escapar).



    Para ler as criaturas é preciso ter pureza de coração. Quem tem o coração reto pode ler o universo e ver nele a imagem de Deus nos anjos e nos homens, e ver seus vestígios, nas criaturas feitas por Deus para o homem.



    Corneille fez uma bela poesia sobre este tema: “Si ton coeur étair droit…”.




    • Si ton coeur étair droit…
    • Si ton coeur était droit, toutes les créatures
    • te seraient des miroirs et des livres ouverts,
    • où tu verrais sans cesse, en mille lieux divers,
    • des modèles de vie et des doctrines pures.
    • Toutes, come à l’envie, te montrent leur Auteur,
    • Il a dans la plus basse imprimé sa hauteur,
    • et dans les plus petite Il est plus admirable:

    • De sa pleine bonté, rien ne parle à demi,
    • et du vaste océan la masse épouvantable
    • ne l ‘étale moins que la moindre fourmi.
    • Et tous les êtres ne parlent que de Lui
    • dès la Sainte Vierge au petit grain de sable,
    • dès la petite étoile au Soleil à midi.

    • (Adaptado de Pierre Corneille)


    • ["Se teu coração fosse reto, todas as criaturas
    • seriam para ti como espelhos e livros abertos,
    • onde verias, sem cessar, em mil lugares diversos,
    • modelos de vida e doutrinas puras.
    • Todas como desejosas te mostram o seu Autor.
    • Ele, na mais baixa delas, imprimiu a sua grandeza,
    • e na menor de todas, Ele é ainda mais admirável.
    • De sua plena bondade nada fala pela metade,
    • e a massa espantosa do vasto Oceano,
    • não O patenteia mais do que a pequena formiga.
    • E todos os seres só falam dEle,
    • desde a Santa Virgem até ao menor grão de areia,
    • desde a menor estrelinha até o Sol ao meio dia".]




    Hugo de São Victor nota que Deus deu a Adão três olhos:



    1 – O olho material;
    2- O olho da razão;
    3 – O olho da Sabedoria.



    Com o pecado original, o homem perdeu o olho da Sabedoria, o que tornou necessária, para ele, a revelação.



    Ficou ainda com o olho da razão danificado, de modo que com dificuldade compreendia a verdade.



    Só lhe ficou intato o olho material. Daí, o homem ter a tendência de acreditar só no que vê. Por isso, Cristo chamou bem aventurados aqueles que, não tendo visto, creram.



    Deve-se notar, em conseqüência, que há três maneiras de ver a Deus, no universo criado:



    1 — Pela luz natural da razão. É definido pelo Concílio Vaticano I, que é possível, pela luz natural da razão, chegar ao conhecimento da existência de Deus. Foi o que fez Aristóteles com as suas cinco provas da existência de Deus. Mas, embora sem o conhecimento metafísico de Aristóteles, os homens podem chegar ao conhecimento de que tem que existir um Deus criador de todas as coisas, ao examinarem a ordem e o bem das coisas existentes.



    2– Uma segunda maneira de chegar a essa visão — e muito mais perfeita — é pela luz da Fé. É a Fé que nos permite conhecer a verdade plena. Além disso, a luz da Fé auxilia enormemente a razão a compreender as coisas que ela examina naturalmente, porque a graça aperfeiçoa a natureza.



    3 — A terceira maneira de ver a Deus nas coisas criadas é pela luz da sabedoria proveniente da Fé, pois nem toda pessoa que tem Fé, possui também virtude. A pessoa pode ter Fé e viver em pecado. Mas aquele que tem Fé e possui a virtude, pode ver a Deus nas coisa criadas.



    Todas essas maneiras de ver a Deus serão superados pela visão beatífica, no céu, quando se verá a Deus face a face.



    O dom do Espírito Santo correspondente a esta Bem Aventurança é o da Inteligência, já que é a inteligência uma forma de visão superior.



    Depois destas considerações é de espantar que o mundo atual, tão mergulhado na impureza e nos prazeres materiais, seja ateu, e incapaz de ver a Deus?



    Dos homens de nosso tempo pode-se dizer o que Dante disse dos condenados ao inferno: “quelli che hanno perso il bem del intellecto” (aqueles que perderam o bem do inteletto”.







    7a)“Bem Aventurados os pacíficos, porque serão chamados filhos de Deus”



    Paz é a tranqüilidade na ordem.



    Paz não é a ausência de luta ou de guerra, como se pensa neste século que não pensa.



    Hoje, se julga que, havendo tranqüilidade, haveria paz. Ora, a tranqüilidade pode ser ou causada pela morte ou pela ordem. Num cemitério pode haver tranqüilidade, porém não há ordem, mas deterioramento e putrefação. Numa classe de aula se entram assaltantes e pelas armas impõem silêncio, haverá uma falsa tranqüilidade, mas não haverá paz.



    A tranqüilidade da paz é aquela que é produzida pela ordem. Ora, a ordem é e reta disposição de elementos de um conjunto, para alcançar um fim.



    Há ordem quando cada elemento de um todo está em seu devido lugar, faz o que deve e recebe aquilo a que tem direito. E fazer o que se deve, e receber o que se tem direito é exatamente o que faz a justiça. Por isso, está escrito: “A paz é obra da justiça”.



    Isto é o que ensina Santo Agostinho: “A paz é a tranqüilidade da ordem: e a ordem é a disposição por meio da qual se concede a cada um o seu lugar, conforme sejam iguais ou desiguais. Assim como não há ninguém que não queira alegrar-se, também não há ninguém que não queira a paz. Sendo assim, até mesmo os que querem a guerra não buscam encontrar outra coisa senão a paz gloriosa, batalhando”. (Santo Agostinho, apud São Tomás, Catena Aurea, p.119).



    Pacífico é aquele que faz a paz. Mas não à guisa dos que ganham o prêmio Nobel, simplesmente pondo fim a uma guerra. Pacífico é o que estabelece a paz como produto da ordem e da justiça.



    Um corpo que não tenha saúde, não tem paz física, porque no estado doentio os órgãos ou não fazem o que devem ou não recebem o que tem direito e necessidade. Quando o mal é causado por um tumor, só se recupera a saúde por meio de uma operação cirúrgica. O bisturi traz a saúde. Do mesmo modo, na sociedade, muitas vezes, só se restabelece a paz por meio de um “bisturi”, que é a espada, para restabelecer a justiça e a ordem. Por essa razão Santa Joana d”Arc dizia: “Só se terá paz na ponta da lança”. E ela era uma guerreira pacífica, que os anjos chamavam “Fille de Dieu”.



    Assim como há uma paz internacional, ou social, do mesmo modo pode se ter uma paz de alma.



    Explica Santo Agostinho que são pacíficos aqueles que, tendo ordenado todos os movimentos de sua alma, sujeitando-os à razão, mantém sob domínio todas as concupiscências da carne. E esta é a paz que Deus dá, na terra aos homens de boa vontade. E homens de boa vontade não são alguns misteriosos senhores que não seguem nenhuma religião, mas apenas os Direitos do Homem. Homens de boa vontade são aqueles que querem fazer, antes de tudo, a vontade de Deus.



    Só quem tem paz em si mesmo, pode oferecer a paz aos demais.



    Os que vivem em paz consigo mesmos, e procuram ordenar o próximo de modo que eles também tenham paz, agem para com eles como verdadeiros irmãos. Vivem com os demais como numa família e, por isso têm a Deus por Pai adotivo. Pois só há paz quando tudo se submete a Deus Pai. Daí, o prêmio desses homens que buscam a paz é o de serem chamados “filhos de Deus”.



    O Dom do Espírito Santo correspondente a esta Bem Aventurança é o da Sabedoria.



    O Doutor de Hipona explica, por fim, que esta Bem Aventurança é colocada em sétimo lugar, porque no sétimo dia Deus descansou, simbolizando o descanso eterno dos Bem Aventurados no céu, onde eles reinarão como Filhos de Deus.

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