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Ceticismo e dinâmica social na investigação da religião política
Fonte: Globo
RIO – Desde as manifestações de junho, um coro voltou às ruas: “A verdade é dura, a Globo apoiou a ditadura”. De fato, trata-se de uma verdade, e, também de fato, de uma verdade dura.
Já há muitos anos, em discussões internas, as Organizações Globo reconhecem que, à luz da História, esse apoio foi um erro.
Há alguns meses, quando o Memória estava sendo estruturado, decidiu-se que ele seria uma excelente oportunidade para tornar pública essa avaliação interna. E um texto com o reconhecimento desse erro foi escrito para ser publicado quando o site ficasse pronto.
Não lamentamos que essa publicação não tenha vindo antes da onda de manifestações, como teria sido possível. Porque as ruas nos deram ainda mais certeza de que a avaliação que se fazia internamente era correta e que o reconhecimento do erro, necessário.
Governos e instituições têm, de alguma forma, que responder ao clamor das ruas.
De nossa parte, é o que fazemos agora, reafirmando nosso incondicional e perene apego aos valores democráticos, ao reproduzir nesta página a íntegra do texto sobre o tema que está no Memória, a partir de hoje no ar:
1964
“Diante de qualquer reportagem ou editorial que lhes desagrade, é frequente que aqueles que se sintam contrariados lembrem que O GLOBO apoiou editorialmente o golpe militar de 1964.
A lembrança é sempre um incômodo para o jornal, mas não há como refutá-la. É História. O GLOBO, de fato, à época, concordou com a intervenção dos militares, ao lado de outros grandes jornais, como “O Estado de S.Paulo”, “Folha de S. Paulo”, “Jornal do Brasil” e o “Correio da Manhã”, para citar apenas alguns. Fez o mesmo parcela importante da população, um apoio expresso em manifestações e passeatas organizadas em Rio, São Paulo e outras capitais.
Naqueles instantes, justificavam a intervenção dos militares pelo temor de um outro golpe, a ser desfechado pelo presidente João Goulart, com amplo apoio de sindicatos — Jango era criticado por tentar instalar uma “república sindical” — e de alguns segmentos das Forças Armadas.
Na noite de 31 de março de 1964, por sinal, O GLOBO foi invadido por fuzileiros navais comandados pelo Almirante Cândido Aragão, do “dispositivo militar” de Jango, como se dizia na época. O jornal não pôde circular em 1º de abril. Sairia no dia seguinte, 2, quinta-feira, com o editorial impedido de ser impresso pelo almirante, “A decisão da Pátria”. Na primeira página, um novo editorial: “Ressurge a Democracia”.
A divisão ideológica do mundo na Guerra Fria, entre Leste e Oeste, comunistas e capitalistas, se reproduzia, em maior ou menor medida, em cada país. No Brasil, ela era aguçada e aprofundada pela radicalização de João Goulart, iniciada tão logo conseguiu, em janeiro de 1963, por meio de plebiscito, revogar o parlamentarismo, a saída negociada para que ele, vice, pudesse assumir na renúncia do presidente Jânio Quadros. Obteve, então, os poderes plenos do presidencialismo. Transferir parcela substancial do poder do Executivo ao Congresso havia sido condição exigida pelos militares para a posse de Jango, um dos herdeiros do trabalhismo varguista. Naquele tempo, votava-se no vice-presidente separadamente. Daí o resultado de uma combinação ideológica contraditória e fonte permanente de tensões: o presidente da UDN e o vice do PTB. A renúncia de Jânio acendeu o rastilho da crise institucional.
A situação política da época se radicalizou, principalmente quando Jango e os militares mais próximos a ele ameaçavam atropelar Congresso e Justiça para fazer reformas de “base” “na lei ou na marra”. Os quartéis ficaram intoxicados com a luta política, à esquerda e à direita. Veio, então, o movimento dos sargentos, liderado por marinheiros — Cabo Ancelmo à frente —, a hierarquia militar começou a ser quebrada e o oficialato reagiu.
Naquele contexto, o golpe, chamado de “Revolução”, termo adotado pelo GLOBO durante muito tempo, era visto pelo jornal como a única alternativa para manter no Brasil uma democracia. Os militares prometiam uma intervenção passageira, cirúrgica. Na justificativa das Forças Armadas para a sua intervenção, ultrapassado o perigo de um golpe à esquerda, o poder voltaria aos civis. Tanto que, como prometido, foram mantidas, num primeiro momento, as eleições presidenciais de 1966.
O desenrolar da “revolução” é conhecido. Não houve as eleições. Os militares ficaram no poder 21 anos, até saírem em 1985, com a posse de José Sarney, vice do presidente Tancredo Neves, eleito ainda pelo voto indireto, falecido antes de receber a faixa.
No ano em que o movimento dos militares completou duas décadas, em 1984, Roberto Marinho publicou editorial assinado na primeira página. Trata-se de um documento revelador. Nele, ressaltava a atitude de Geisel, em 13 de outubro de 1978, que extinguiu todos os atos institucionais, o principal deles o AI5, restabeleceu o habeas corpus e a independência da magistratura e revogou o Decreto-Lei 477, base das intervenções do regime no meio universitário.
Destacava também os avanços econômicos obtidos naqueles vinte anos, mas, ao justificar sua adesão aos militares em 1964, deixava clara a sua crença de que a intervenção fora imprescindível para a manutenção da democracia e, depois, para conter a irrupção da guerrilha urbana. E, ainda, revelava que a relação de apoio editorial ao regime, embora duradoura, não fora todo o tempo tranquila. Nas palavras dele: “Temos permanecido fiéis aos seus objetivos [da revolução], embora conflitando em várias oportunidades com aqueles que pretenderam assumir a autoria do processo revolucionário, esquecendo-se de que os acontecimentos se iniciaram, como reconheceu o marechal Costa e Silva, ‘por exigência inelutável do povo brasileiro’. Sem povo, não haveria revolução, mas apenas um ‘pronunciamento’ ou ‘golpe’, com o qual não estaríamos solidários.”
Não eram palavras vazias. Em todas as encruzilhadas institucionais por que passou o país no período em que esteve à frente do jornal, Roberto Marinho sempre esteve ao lado da legalidade. Cobrou de Getúlio uma constituinte que institucionalizasse a Revolução de 30, foi contra o Estado Novo, apoiou com vigor a Constituição de 1946 e defendeu a posse de Juscelino Kubistchek em 1955, quando esta fora questionada por setores civis e militares.
Durante a ditadura de 1964, sempre se posicionou com firmeza contra a perseguição a jornalistas de esquerda: como é notório, fez questão de abrigar muitos deles na redação do GLOBO. São muitos e conhecidos os depoimentos que dão conta de que ele fazia questão de acompanhar funcionários de O GLOBO chamados a depor: acompanhava-os pessoalmente para evitar que desaparecessem. Instado algumas vezes a dar a lista dos “comunistas” que trabalhavam no jornal, sempre se negou, de maneira desafiadora.
Ficou famosa a sua frase ao general Juracy Magalhães, ministro da Justiça do presidente Castello Branco: “Cuide de seus comunistas, que eu cuido dos meus”. Nos vinte anos durante os quais a ditadura perdurou, O GLOBO, nos períodos agudos de crise, mesmo sem retirar o apoio aos militares, sempre cobrou deles o restabelecimento, no menor prazo possível, da normalidade democrática.
Contextos históricos são necessários na análise do posicionamento de pessoas e instituições, mais ainda em rupturas institucionais. A História não é apenas uma descrição de fatos, que se sucedem uns aos outros. Ela é o mais poderoso instrumento de que o homem dispõe para seguir com segurança rumo ao futuro: aprende-se com os erros cometidos e se enriquece ao reconhecê-los.
Os homens e as instituições que viveram 1964 são, há muito, História, e devem ser entendidos nessa perspectiva. O GLOBO não tem dúvidas de que o apoio a 1964 pareceu aos que dirigiam o jornal e viveram aquele momento a atitude certa, visando ao bem do país.
À luz da História, contudo, não há por que não reconhecer, hoje, explicitamente, que o apoio foi um erro, assim como equivocadas foram outras decisões editoriais do período que decorreram desse desacerto original. A democracia é um valor absoluto. E, quando em risco, ela só pode ser salva por si mesma.”
Meus comentários
Reconhecer um “erro” no apoio ao regime militar não deveria ter nada de mais, não fosse a escolha de péssimos frames para fazê-lo. Por exemplo, o texto começa dizendo “Desde as manifestações de junho, um coro voltou às ruas: ‘A verdade é dura, a Globo apoiou a ditadura’. De fato, trata-se de uma verdade, e, também de fato, de uma verdade dura.”
Na verdade, o editorial deveria dizer que a Globo apoiou a menos sangrenta de duas ditaduras, e poderia se auto-questionar dizendo “Foi a melhor forma de fazê-lo?”. Em um momento onde tínhamos a opção entre uma ditadura de psicopatas e uma ditadura de militares, não seria melhor que os esquerdistas moderados (em oposição aos esquerdistas marxistas) realizassem uma estratégia cultural ao invés de focar na conquista de poder imediato?
Há uma certa lógica na seguinte expressão “A democracia é um valor absoluto. E, quando em risco, ela só pode ser salva por si mesma.” Ela nos diz que se um grupo está jogando a partir da democracia para tomar o poder totalitário (como faziam os marxistas), seus oponentes deviam jogar a partir da democracia também.
A dinâmica é cruel: quem toma o poder através do uso da força direta pode ser rotulado pelo oponente como “ditador”, mas quem não chegou a tomar esse poder através do uso da força direta, mas fazia tudo para consegui-lo por vias da manifestação popular, podia se auto-rotular como “democrático”. Claro que os marxistas jamais foram democráticos, mas ao menos tinham o benefício de ter o outro lado como usuário de força direta para conquistar poder através do estado. Em termos de dinâmica social isso diz que os marxistas podiam gritar “ele usou a força do estado, de forma ditatorial”, enquanto quem estava do outro lado perdeu esse poderoso capital político.
Hoje em dia a Globo está pressionada ideologicamente, e a única forma de reverter isso é através da contra-propaganda desmascarando seus oponentes. Quando os mensaleiros aparecem em público dizendo que lutavam pela “democracia”, fatos devem ser expostos mostrando que eles queriam de fato uma ditadura mais sangrenta.
É verdade que João Goulart tornou a situação insustentável, mas será que não havia uma outra forma de demolir a sua credibilidade perante o público expondo os fatos? Não seria melhor deixar que jornalistas marxistas ficassem restritos apenas a grupos deles? Quando Brizola declarou “se não dermos o golpe, eles o darão contra nós”, ele poderia ser desmascarado em público como um proponente de uma ditadura. Mas, quando os militares tomaram o poder pelo uso da força, perderam esse frame.
Na verdade, o erro do Globo foi ter se posicionado a favor do regime militar, quando poderia ter proposto um impeachment de João Goulart, que estava se aliando a terroristas para tomar o poder de forma totalitária.
Esse é o principal erro que o Globo deveria ter reconhecido (o de apoiar uma ditadura quando deveria ter apoiado um impeachment), o que mostraria, com razão, que os ditadores mais perigosos da questão estavam do lado marxista. E hoje estão no poder, lutando para controlar a mídia e implementar, de fato, uma ditadura.
Para piorar, o fato dos não-marxistas terem implementado uma ditadura militar deu à esquerda marxista o capital político que eles precisavam para tentarem implementar uma ditadura marxista. E eles estão quase conseguindo…
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Escrito por lucianohenrique
1 de setembro de 2013 às 9:13 pm
Publicado em Outros
Etiquetado com controle de frame, ditadura militar, esquerda, frame,guerra política, jogo político, marxismo, marxismo cultural, política,totalitarismo
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2 Respostas
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Tornou-se comum pessoas e instituições virem a público lamentarem-se por eventos passados. Mesmo considerando-se que as condicionantes atuais possam ser completamente diferentes das pretéritas.
Mas, sempre quem se desculpa imagina que possa ter cometido um erro, um equívoco.
Agora ocorre uma fato inusitado! Uma instituição desculpa-se por ter feito algo correto! Por certo o Dr Roberto Marinho revirou-se desagradavelmente no túmulo ao ler o mea culpa feito pelo jornal O Globo em relação à reação democrática de 1964.
Por outro lado, Gramsci pulou de satisfação, ao constatar que o politicamente correto alcançou níveis que por certo jamais imaginou.
Fica uma pergunta no ar! Em 1 de abril de 1964 o jornal O Globo não circulou uma vez que fuzileiros navais, comandados pelo Almirante Aragão, a soldo de Jango, ocuparam as instalações do jornal. No dia seguinte, libertos, publicaram o editorial intitulado Ressurge a Democracia.
Amanhã, caso os black blocs e os movimentos sociais, sabe-se lá a soldo de quem, impedirem a circulação do jornal, a quem a direção de O Globo irá recorrer? Ao Judiciário? Quem vai cumprir a ordem judicial, caso os manifestantes se recusem a desocupar as instalações? A Polícia Militar? A Força Nacional de Segurança? As Forças Armadas?
Cuidado: o politicamente correto pode custar muito caro, mais caro do que a honra e a dignidade!
Marco Antonio Esteves Balbi”
1 de setembro de 2013 em 9:18 pm
Balbi,
Ultimamente o foco destas matérias está mais direcionado à dinâmica social, pois entendo que este framework dá explicações mais profundas sobre a dinâmica da política.
Sei que você pensa em termos de certo e errado, e valorizo isso, mas na política deve-se focar em alinhar aquilo que consideramos certo com a estratégia correta.
Quando um grupo toma o poder pela força, dá a autoridade moral para o outro grupo dizer “nós somos democráticos, e eles representam a ditadura”. Independente da ditadura ter sido a opção correta, o frame que o oponente poderá utilizar será poderoso em benefício dele.
Uma pergunta: o quanto a esquerda marxista capitalizou nos últimos anos por causa das “masmorras da ditadura” de que eles reclamam tanto? Esse é o nível do capital político que foi dado a esquerda por causa do golpe militar.
Abs,
LH
1 de setembro de 2013 em 9:25 pm
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