Confundindo técnica e ética: fecundação “tri-parental” aprovada na Grã-Bretanha

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Eu li no Meio Bit o Cardoso explicando uma nova técnica (dita “terapêutica”) para “corrigir” defeitos mitocondriais e possibilitar que mães portadoras de certas doenças genéticas possam ter filhos saudáveis. À parte a retórica anti-clerical do articulista (que, neste texto, encontra-se particularmente furibunda), o que interessa é o seguinte: existem algumas doenças causadas por defeitos nas mitocôndrias. Como as mitocôndrias vêm somente da mãe (já estão presentes no óvulo), uma mulher com mitocôndrias doentes irá necessariamente passá-las para seus filhos. Dependendo de alguns fatores que não são mencionados no texto, a doença pode não se manifestar, mas mesmo assim a pessoa terá um DNA mitocondrial defeituoso (e, se for uma mulher, vai repassá-lo para os seus filhos, etc.). E estas doenças mitocondriais podem ser bem graves, de modo que é natural que se queira encontrar uma forma de evitá-las.
A nova técnica é simples: como as mitocôndrias não ficam no núcleo do óvulo (e sim no citoplasma), basta pegar dois óvulos (de mulheres distintas), tirar os dois núcleos e enxertar o do óvulo da mulher que tem mitocôndrias defeituosas no outro (da mulher que tem mitocôndrias sãs). O resultado é um óvulo “híbrido”, com o núcleo de uma mulher (que é a parte que contém a carga genética) e o resto (citoplasma e membrana) da outra mulher. A partir daqui, segue-se um procedimento normal de fertilização in vitro, e a criança nascida assim irá herdar a carga genética de sua mãe, mas não o seu DNA mitocondrial. O procedimento foi recentemente aprovado por um comitê ético britânico.
Bom… o que dizer? Foi feita, no texto, uma crítica à (inevitável…) comparação da técnica com a história do monstro do Dr. Frankenstein. E a comparação é bastante pertinente, porque no fundo a idéia de “montar” um corpo a partir de partes dos corpos de outras pessoas está presente em um caso e em outro: a diferença é somente a escala. É claro que o procedimento é imoral. Mas, ao contrário do que possa parecer, a imoralidade está na fertilização in vitro, já incontáveis vezes condenada e cujos (incontáveis) problemas já deram abundantes provas de sua existência. O problema evidentemente não está em querer mitocôndrias saudáveis; o problema está na idéia de se produzir seres humanos em laboratórios. Não me espanta nada que esta “fecundação com três pais” tenha sido aprovada, uma vez que – como disse o Cardoso e, infelizmente, é verdade – «[h]oje qualquer clínica de subúrbio faz bebês de proveta, e ninguém em sã consciência consideraria essas crianças algo fora do normal».
O problema, repetimos, não está no fim almejado. O fim é sem dúvidas bom. Se fosse possível dar à mãe uma pílula que agisse nos seus ovários e alterasse as mitocôndrias lá presentes (tornando-as sadias), isto certamente não seria imoral. Não vale a pena entrar neste casuísmo de curar (ou melhor, de prevenir) doenças genéticas levantado pela matéria, porque a resposta é bastante óbvia: se se está empregando um meio intrinsecamente mau (como a fecundação in vitro), elencar os benefícios trazidos pela técnica não faz nenhuma diferença. É errado criar bebês (ditos) de proveta independentemente do quão “bom” seja o bebê resultante do procedimento, e isto porque errada é a fertilização in vitroconsiderada em si mesma, e não dependendo da proficiência técnica que se adquira em executá-la.
No fundo, trata-se da velha e evidente diferença (totalmente imperceptível para os “cientólatras” deslumbrados com o progresso científico) entre a capacidade técnica e a permissão ética: poder fazer algo [= conseguir] não significa que se possa fazê-lo [= ser lícito]. Os que foram ofuscados pelo recente progresso técnico perdem-se completamente na semelhança entre as palavras e simplesmente não enxergam a polissemia aqui presente. A questão não é somente se existe tecnologia para tanto ou se os resultados obtidos são “seguros”: a questão envolve os meios que são empregados. Era bastante óbvio que as coisas chegariam a este ponto. A Igreja já o dissera:
As técnicas de fecundação in vitro podem abrir possibilidade a outras formas de manipulação biológica ou genética dos embriões humanos, tais como as tentativas ou projetos de fecundação entre gametas humanos e animais e de gestação de embriões humanos em úteros de animais bem como a hipótese ou projeto de construção de úteros artificiais para o embrião humano.
Este texto foi escrito vinte e cinco anos atrás. Eu nem vou insistir no seu caráter profético: vou me ater ao fato de que era óbvio. Uma vez que a vida deixa de ser um dom sublime para ser um produto de uma manipulação técnica, como esperar que ela continue detendo o respeito absoluto do qual é digna? Como esperar, aliás, que ela tenha qualquer respeito? É infelizmente próprio do ser humano desrespeitar o que lhe é inferior e não zelar pelo que ele pode substituir. Quando os seres humanos passaram a ser produtos de laboratório, estavam abertas as portas para os maiores abusos e arbitrariedades. Só não viu quem não quis. E é triste constatar que até hoje perdurem os que não querem ver. A vida humana vai sendo cada vez mais coisificada e, no entanto, eles saúdam cada passo desta triste marcha tecendo-lhe rebuscadas loas! A meus ouvidos, soam como trombetas de um Apocalipse auto-produzido, de um fim do mundo principiado por iniciativa humana. Nestes tempos de Rio+20 convém deixar claro: as catástrofes globais antropogênicas realmente sérias não são as ecológicas, e sim as morais. Nestas, sim, é inegável a ação humana deletéria. Com estas, sim, é urgente nos preocuparmos. Estas, sim, são uma evidente ameaça concreta à humanidade e portanto devem ser combatidas com afinco.


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Leia também:
  1. Bassuma e a Comissão de “Ética” do PT
  2. Nota da CNBB sobre ética e programas de TV